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Correio da Educação

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1. A cultura é uma marca natural do homem, pelo que não há homem sem cultura e onde houver um homem aí surgirá a cultura correspondente. Porque o homem existe num tempo e num espaço, o devir temporal - constituído pelo tripé passado, presente e futuro - é indissociável da cultura. Este triângulo, o horizonte existencial do homem, é reelaborado constantemente pelo ele e pela comunidade onde se integra, a partir do lugar donde ele vê o mundo.

Vem esta reflexão a propósito do livro de Joaquim Paço d’Arcos, Correspondência e Textos dispersos 1942 -1979. Corresponde ao quarto volume da obra Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo de um homem das sete partidas, filho de oficial da Marinha, que esteve ligado à governação de colónias portuguesas e de companhias nelas sedeadas, funcionário da Companhia Nacional de Navegação e diretor dos serviços de imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Estes dois últimos cargos tornaram-no um espetador privilegiado do mundo entre os anos trinta e os anos sessenta do século XX: trabalhava de manhã no primeiro e à tarde no segundo.

Denominada Empresa Nacional de Navegação, em 1881, e Companhia Nacional de Navegação, em 1918, a existência desta empresa/companhia releva o papel desempenhado pelo mar na mentalidade portuguesa até ao último quartel do século passado. Foi o mar, mais do que a terra, que nos ligou ao mundo e, em especial, a África.

Foi o mar, um nosso aliado, mais que opositor, na busca da nossa subsistência histórica. Mesmo se, nas palavras de Pessoa, lhe podemos gritar: “quanto do seu sal / são lágrimas de Portugal. / Por [o] cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar”. E, no romance tradicional, “a nau Catrineta / tem muito que contar / [concretamente] Passava mais de ano e dia / Que iam na volta do mar / Já não tinham que comer / Já não tinham que manjar.”

 

 

2. A presença da África na cultura portuguesa que aflora da obra de Joaquim Paço d’Arcos, publicada pela Dom Quixote no centenário do nascimento do autor, revela duas imagens: uma de serenidade, de equilíbrio, de normalidade histórico-cultural, e outra de perturbação dessas características, situando-se o ponto de viragem no início da década de sessenta quer com a guerra quer com a questão da Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, ao atribuir o prémio de novelística a Luandino Vieira, ao qual o autor se opôs.

As duas décadas seguintes implantam uma nova imagem de África no imaginário cultural português caracterizada pela desorientação e pelo trauma. E a consciência nacional cultural ainda não alcançou, até hoje, um equilíbrio renovado na visão cultural africana, balançando entre o saudosismo romântico e o quase esquecimento catártico, entre o economicismo, puro e duro, e o individualismo relacional cultural.

Na verdade, a matriz africana da cultura portuguesa, ao longo do século XX, ostenta cambiantes vários: liberais, axiológico-históricos, escolares, institucionais, economicistas e românticos.

 

3. E o futuro? Como superar esta ausência, este hiato, este vazio, deixados na cultura portuguesa pelas últimas décadas? Como transmitir às novas gerações o património cultural que durante séculos impregnou o imaginário coletivo nacional e dos povos com quem nos relacionámos em África?

Impõe-se uma nova matriz cultural. Nesta intervêm agora, mais do que antes, os povos que tomaram o seu destino sobre os ombros, a partilhar, mutuamente, com o nosso. Temos de ser criativos, abertos e generosos na reapreciação do passado e na invenção do futuro. A cultura comum não pode deixar de contemplar o devir temporal, referido no início, passado, presente e futuro de todos nós.

Temos de nos elevar acima das coisas e de nós próprios, com a sabedoria milenar dos povos, como no registo dos da América Central: “Somos mais altos do que a palmeira, / porque os nossos olhos chegam às palmas, / chegam às aves voando por cima das palmas. / Somos mais longos do que um rio, / porque ouvimos o longínquo rumor do mar / ou fechando os olhos vemos o fulgor das praias.” (Rosa do Mundo, 205)

Quanto ao passado, há que conhecê-lo, revisitá-lo e assumi-lo, desde aqui e agora. Há que verbalizá-lo, a várias vozes ou países, com franqueza e vontade de dele retirar os alicerces de uma cultura, a construir a várias mãos e servindo múltiplos projetos. Para isso, tenhamos presente uma mensagem azteca, na qual, o passado como: “O rio passa / e nunca cessa. / O vento passa, passa / e nunca cessa, / A vida passa: nunca regressa.” (Rosa do Mundo, 140)

O presente deve recolher as boas vontades de todos, a solidariedade de pessoas abertas perante o mundo e a disponibilidade para encontrar pontos de equilíbrio na visão de cada um. E o futuro será essa confluência de interesses a negociar, onde todos ganham desde que por ele façam o seu melhor e busquem o mais justo e o mais verdadeiro.

Ainda aqui, uma sabedoria americana, a dos Quíchuas, nos poderá guiar ao longo desse percurso: “A hora virá de nos alegrarmos / juntos dançando sob a lua cheia. / Hemos de cantar a canção mais doce. / A hora virá de dançarmos juntos […] / Sob estrela de ouro, sobre chão de flor.” (Rosa do Mundo, 163).

 

J. Esteves Rei - Professor Catedrático de Didáctica das Línguas e de Comunicação, na UTAD, Vila Real

 

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