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Correio da Educação

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14 Nov, 2012

O Aroma da Memória

 

* Rosa Duarte

 

Ter memória de elefante não é para todos. Mas à nossa escala humana, cobaias do terceiro milénio, não há ninguém que a ela não recorra, nem que seja para se reconhecer ao espelho, fazer um simples flashback para lançar a mão às chaves do carro ou de casa, ou desanuviar de um dia de trabalho com uma imagem mental de companhia.

A nossa memória é a nossa história, a nossa identidade. Construímo-nos a registar e a reler esses registos. E a cada recordação, mesmo sem querer, fazemos involuntárias reformulações.

 

De tal modo que me vieram à ideia as correrias que fazia com os meus irmãos no parque infantil do Monsanto nos escorregas de chapa enormes, a sentir as minhas pernas a queimar pela fricção, os baloiços brancos largos, com proteções lassas e grossas… e a sentir depois algum enjoo a seguir ao almoço à conta do calor e dos safanões…

 

E apesar do gosto humano por estas viagens memorialísticas, o que recordamos do que sentimos nunca são as sensações rigorosamente reais. Nunca relemos ou recordamos de forma fidedigna um acontecimento, nem mesmo por resistência ou força decalcada. Quando analisamos o que sentimos, o que estamos a fazer são juízos de valor sobre o que pensamos que estamos a sentir. E parece que a individualidade das nossas experiências é o que a ciência mal consegue explicar. Cada um de nós habita um cérebro único, ao qual estamos ligados pelo humor dos desejos pessoais, momentâneos, moldados nos nossos neurónios.

 

No entanto, tanto a ciência como a arte lidam com factos. Proust dizia: «A sensação é para o escritor o que a experimentação é para o cientista.» Mas até agora só o artista consegue amplamente descrever a realidade subjetiva.

 

O filósofo Henri Bergson, Nobel da Literatura em 1927, afirmava que a realidade da autoconsciência não podia ser reduzida ou dissecada experimentalmente. Acreditava que só nos podemos compreender através da intuição, um processo que exige muita introspeção e contemplação. Proust, seu primo por afinidade, foi um dos primeiros artistas a interiorizar esta filosofia tão em voga no ocidente dos nossos dias, a tal ponto que considerou a literatura realista, a que se limitava a descrever coisas, a mais afastada da realidade. Como insistia Bergson, a realidade é melhor compreendida subjetivamente quando acedemos às verdades intuitivamente.

 

A neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel Herz, uma psicóloga em Brown, demonstrou, no ensaio científico Testing the Proustian Hypothesis, que os nossos sentidos do olfato e do paladar são os únicos sentidos que se ligam diretamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro.

 

António Damásio, no seu Livro da Consciência, avisa que: «O eu é, garantidamente, uma festa móvel» (p.215). A ficção de Proust, que é principalmente a não ficção, explora a forma como o tempo muda a memória. Moldamos a memória à nossa narrativa pessoal. Proust previne-nos de que a realidade das nossas memórias deve ser tratada com cuidado e ceticismo.

 

Hoje curiosamente a ciência está a descobrir a verdade molecular subjacente a estas teorias proustianas. A consciência é cada vez maior sobre a imperfeição das nossas lembranças de factos passados.

 

A «desonestidade» da memória foi primeiramente documentada por Freud, por acaso, quando se apercebeu de que as suas pacientes, no decurso do seu estudo, acabaram por acreditar na sinceridade das memórias que relatavam de abusos sexuais.

 

Contudo, a ciência diz-nos que os neurónios não se tocam. Formam memórias por alterações subtis na resistência das sinapses. Então o momento de tempo é introduzido no espaço vazio da arquitetura do cérebro.

 

Para Proust, as memórias eram como as suas frases, que nunca parava de modificar. Tornou-se um incansável revisor dos seus textos. Era um escritor que acreditava no ato da escrita como um processo criativo espontâneo. Nunca começava por delinear as suas histórias. Achava que o romance, tal como a inverdade das memórias que descrevia, devia discorrer naturalmente.

 

A plasticidade da narrativa era um dos elementos mais realistas em Proust. Até na última noite da sua vida, queria modificar uma parte do romance que descrevia a morte lenta de uma personagem, porque entretanto tinha um pouco mais a experiência do que era estar moribundo.

Também Paul Ricoeur em Vivo até à Morte fez questão de testemunhar na última parte do livro, com letra moribunda, o sentimento de proximidade do fim, já no último mês da sua vida.

 

Proust estava intensamente consciente da sua própria fraude. Como ele próprio disse: «O único paraíso é o paraíso perdido.» Não há maneira de descrever o passado sem mentir. As nossas memórias não se parecem com a ficção. São a própria ficção. O romance e a vida, o cronista e o ficcionista são, na realidade, indistintos. A recordação de uma determinada imagem não passa de nostalgia de um determinado momento. Proust sabia intuitivamente que as nossas memórias exigiam este processo transformador. O segredo de Proust foi a consciência da distorção da memória de algo para o podermos recordar.

 

Os modelos conservadores científicos não conseguiram explicar a aleatoriedade e estranheza da memória. Atualmente começam-se a revelar pormenores moleculares que presidem ao modo como as nossas memórias subsistem, as «marcas sinápticas» de que nos fala o Nobel Eric Kandel, mesmo depois de nos termos esquecido delas. As memórias, como insistia Proust, não se limitam a perdurar, mas também a mudar invariavelmente. Sempre que evocamos os nossos passados, as nossas reminiscências ficam maleáveis de novo.

 

O jovem autor Jonah Lehrer, no livro Proust era um neurocientista, a que tenho recorrido nesta reflexão, explica que embora os priões que marcam as nossas memórias sejam praticamente imortais, os pormenores dendríticos são constantemente alterados, viajando entre os polos da lembrança e do esquecimento. O passado é ao mesmo tempo perpétuo e efémero.

 

Não é ingenuamente que n’O Viver para contá-la, Gabriel García Márquez inicia o livro autobiográfico com a frase: «A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.» Outro escalpelizador da memória da vida. E estaria tudo no bom caminho da descoberta do ser, não fora o Livro das Previsões citado por outro Nobel da literatura, José Saramago, n’ As Intermitências da Morte pressagiar que: «Saberemos cada vez menos o que é um ser humano.»

 

 

* Docente do Ensino Secundário.

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