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Correio da Educação

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Guerra Junqueiro, (1889) Poesias Dispersas

 

Declaro-me aposentado.

Terminei. Ponto final.

Resta-me o céu estrelado

E as rosas do meu quintal.

 

Subi a montanha escura

Da Vida... Enorme ascensão:

Uns quatro metros d’altura

Acima do rés-do-chão.

 

Lançando um olhar profundo

Dessa altura sobre-humana,

Vi quanto é pequeno o mundo

E grande a miséria humana

 

Vi a Traição e a Cobiça

Fazendo festins reais

No corpo nu da Justiça,

Às portas dos tribunais.

 

Belo como um Lacoonte,

Vi um titã nas galés:

Trazia a aurora na fronte

E uma grilheta nos pés.

 

Cheio de dor e respeito,

Vendo esse herói, perguntei:

- Qual o teu nome? – O Direito.

- Qual o teu carrasco? – A Lei.

 

Perante o pobre e o humilde,

Vi sempre o Deus Sabaoth

Mandar mais oiro a Rotschild,

Mandar mais esterco a Job.

 

Vi que a história, um sonho breve,

Na noite imensa e voraz,

Se é tácito quem a escreve,

É Tibério quem a faz.

 

Vi que o “rei da criação”

Foi, antes de ser o que é,

Lodo, esponja, tubarão,

Réptil, condor, chimpanzé,

 

E que guarda (são baixezas

Dessa origem que o infama),

Nas mãos o sinal das presas,

Na alma os sinais da lama.

 

Vi que o Mal do Bem se nutre,

E que o Destino dispôs

Para um Prometeu o abutre,

E para um Cristo um algoz.

 

Guia-me apenas, distante,

A luz ingénua da Crença,

Vaga nebulosa errante

Nas trevas da noite imensa...

 

Por isso vim solitário

Envolto, como eremitão,

No rude burel mortuário

Dum panteísta cristão,

 

Cheio de tédio profundo,

Enclausurar-me afinal,

Longe, bem longe do mundo

No in-pace do meu quintal.

 

Rodeei-o com segurança

D’altas muralhas sombrias,

Para ter por vizinhança

As nuvens e as cotovias.

 

Mandei erguê-las, erguê-las

Essas muralhas ao ar,

Para que só as estrelas

Me pudessem ver chorar...

 

Eu quero ao menos, de rastros,

Nos últimos estertores,

Olhar o céu, e ver astros,

Olhar a terra, e ver flores.

 

Este exílio a que submeto

Minh’alma nesta clausura,

É como que um lazareto

Às portas da sepultura.

 

Deixei só a fresta escassa

Por onde caiba à vontade

De fora a mão da Desgraça,

De dentro a mão da Piedade....

 

 

 
Guerra Junqueiro, Obras (Poesia). Poesias Dispersas, (org. e introd., Amorim de Carvalho), porto, Lello, 1972: 795-8.