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Correio da Educação

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1. Fausto Wolf define o mundo como uma surpresa que dói. Eu, por mim, prefiro defini-lo como uma surpresa, mas que agrada. A relação do homem com a dor e o agrado parece ter-se invertido. O mundo de hoje repeliu a dor e com ela tudo o que, de perto ou de longe, com ela se reporta; em contrapartida, colocou o prazer num altar ao qual tudo imola e do qual afasta o que sob qualquer forma pode ensombrá-lo.

 

O espírito de sacrifício é uma espécie de sublimação, quer dizer, a capacidade de aceitar, aqui e agora, um momento desagradável, em função de um bem, um estado, uma posição, posteriores que reputamos mais valiosos. As limitações do homem colocam-no sempre aquém do seu desejo, do seu sentimento e do seu pensamento. Por isso essa capacidade de se dividir, temporalmente, entre um prazer posterior e uma dificuldade anterior é-lhe co-natural.

Era na preparação dos jovens para esta dupla existência temporal que tradicionalmente consistia a educação. Hoje o consumismo de sonhos desorientou o indivíduo através de forças ideológicas que passam pela publicidade, adoçando os produtos, pela imagem, alterando o real, e por estudos de psicologia humana que conhecem a pessoa melhor do que ela se conhece a si própria.

 

2. O espírito de sacrifício saiu das escolas para se acantonar noutros lugares dos quais destaco o futebol profissional ao seu mais alto nível: os ídolos das massas, os heróis nacionais, os ícones mundialmente conhecidos. Vejamos o exemplo do Figo, a partir da entrevista dada ao jornal A Bola, a 17 de Junho de 2007.

É bom sermos por ele confrontados com algumas realidades que esquecemos mesmo quando ditas pelo próprio. Uma sua afirmação lapidar: “o futebol de alto nível exige sacrifícios”. Observemos algumas perguntas e respostas surpreendentes, mas didácticas e pedagógicas: “- Estar 16 anos no top tem algum segredo? – Mentalidade, atitude, força de vontade e espírito de sacrifício. […] - É de ferro? Não tem dores? – Não tenho dores? Quem disse? Há não sei quantos anos que jogo com dores, mas jogo. Quando se atinge uma certa idade, aparecem dores aqui, dores acolá, mas não podes parar! É tudo uma questão de carácter. Há quem sinta uma dor e não jogue. Há quem jogue suportando todas as dores. […] Nunca deixei de fazer sacrifícios para jogar.”

Mas este herói nacional é ainda mais surpreendente, ao afirmar sobre a dor: “[No mundial de 2002] Só consegui estar sem dores quando parei, depois do Mundial […] Tinha uma fractura e pensavam que era só uma entorse.” Educado para esta via conducente ao sucesso - como afirma “quando me proponho ganhar alguma coisa, normalmente ganho. Pelo menos tem sido assim.” - quem o teria marcado mais? Vejamos a resposta: “Nelson Mandela, sem dúvida. Viajei à África do Sul há dois anos para o conhecer. É a maior das referências, pelo que é, pelo que viveu, pelo que sofreu.”

Não haveria prazer no trabalho de Figo? Naturalmente que sim. E onde está a sua origem? Na tarefa bem feita. Podemos aí ler: “o que me dá prazer é sentir o reconhecimento internacional do que faço, o prestígio internacional do que faço, isso dá-me prazer.” Ora este é o privilégio de Figo e daqueles que ocupam as vitrinas mundiais dos media. É que muitos outros cumprem o seu dever e realizam o seu trabalho, mas não os vêem reconhecidos.

O dever é o compromisso que o homem livre assume, perante a sua consciência, de realizar bem aquilo que lhe é, humana e civicamente, atribuído na sua vivência com os outros. O dever é da esfera individual, sendo executado pessoalmente e não lhe podendo fugir sem que nos neguemos a nós próprios. É o dever que mantém o homem vertical, sendo essa verticalidade apenas medida pela consciência que cada um tem de si próprio e do outro.

O trabalho é o plasma que irmana os homens. É a igual relação que mantêm com o trabalho que lhes permite viverem em igualdade. A necessidade de trabalhar para (sobre)viver – tornada destino humano desde o Paraíso original – cria uma equidistância entre todos e de todos com o trabalho. Este enobrece o labor, fraterniza os trabalhadores e liberta do dever, pelo seu cumprimento.

 

3. Assim era tradicionalmente. Assim o revelam os grandes educadores, de Plutarco a Séneca, de Santo Agostinho a Voltaire. 

Ouçamos Séneca, numa das suas Cartas a Lucílio (171, 174) “A sabedoria só se obtém pelo esforço. Quem tiver a noção do esforço exigido pela vida da sabedoria compreenderá que nenhuma luta se vence através da moleza. Todo o provento advém do trabalho. […] A liberdade é a nossa meta, é o prémio das nossas canseiras. Sabes em que consiste a liberdade? Em não ser escravo de nada, de nenhum acaso; em lutar de igual para igual com a fortuna. Se algum dia eu sentir que ela tem mais força do que eu, mesmo assim, essa força será inútil. Nunca me deixarei vencer: a morte será o meu recurso”

Também Voltaire, no seu Cândido, afirma: “Creio que devem dar prazer a um republicano a maior parte dessas obras escritas com tanta liberdade. […] Sim, é bom escrever aquilo que se pensa: é o privilégio do homem.”

E quanto ao trabalho, na sua escrita sábia, mas lapidar diz-nos: “o homem não nasceu para o repouso, pois quando estava no Jardim do Éden, foi expulso para que trabalhasse.”  

E continua: “trabalhemos, então, sem dissertar; é o único meio de tornar a vida suportável.” Pois, como afirma: “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade.” Deste modo, “toda a sociedade adoptou este louvável desígnio: cada um se dedicar a exercer os seus talentos.”

 J. Esteves Rei - Professor Catedrático de Didáctica das Línguas e de Comunicação, na UTAD, Vila Real.

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