Conversas de esplanada
Inês Silva*
É inevitável, por vezes, não se ouvirem certas conversas que ocorrem entre pessoas, anónimos discretos que, distraidamente, se sentam num qualquer lugar e falam sobre os seus afazeres, filhos, sogras, trabalho, entre outros aspectos. Ninguém faz por mal: nem quem fala e é ouvido por alguém, nem quem ouve alguém falar. O ouvinte, que só por acaso é ouvinte, não é um espião nem um jornalista. É alguém que ouve mas não ouve. No entanto, possuindo o ser humano curiosidade aguçada, tal como tem mostrado ao longo da História, por que não liga ele à conversa alheia?
A resposta é muito simples: as conversas do dia-a-dia são cada vez mais vazias. Não têm conteúdo. Por isso, não vale a pena procurar ouvir. Não têm interesse nenhum para ninguém. E ai de quem se atreva a lançar para a mesa um tema polémico, pertinente ou inteligente. A boa conversa está a ser substituída pela tagarelice oca, imposta por regras de cortesia pouco sólidas numa sociedade cada vez mais destituída de conhecimento e de espírito crítico. Não se está aqui a falar de técnicas da expressão oral, mas sim de assunto, tema, conhecimento – da inventio dos retóricos.
Talvez fosse melhor reaprender a comunicar com sentido, porque falar por falar para não se estar calado é o que faz uma simples árvore, que agita os troncos quando comandada pelo vento. Mas uma árvore tem sempre graciosidade, ao invés do falante que a perde total e fatidicamente, quando não consegue ter graça com um dito inteligente. Portugal é um país de sol e de esplanadas. E assim que deixa de chover, os portugueses acorrem a estes pequenos recantos que proliferam em cima dos passeios, em estrados de madeira, na areia, em varandas de restaurantes e cafés, em terraços, enfim, onde o sol chega… As mesas de plástico ou de madeira, de tom debotado, mostram que a chuva já por ali passou e que as alterou, alterando a sua cor com os pingos. Num destes dias, em cima de uma mesa, numa esplanada em Portugal, para além das manchas, pôde observar-se a cor preta da capa do Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares. O sol era intenso, o café saboroso e o tempo sossegado. O leitor de Jerusalém abriu o livro na página 35 e leu: “O próximo século será o da seriedade ou então perderemos tudo o que conquistámos, pensava Theodor.” Parou a leitura quando ouviu barulho vindo do lado esquerdo, de uma mesa onde estavam sentados quatro jovens, talvez com vinte e cinco anos, cujos telemóveis permaneciam à sua frente, prontos a serem agarrados com garras de leão, ao pequeno sinal. Estavam ali os jovens mas não estavam. Não havia assunto. O seu olhar era vago. Uma rapariga, de cara voltada para o sol, piscava constantemente os olhos. Uma outra falava num coordenador que pediu um texto, “tipo” qualquer coisa, mas como ela não estava para se maçar foi sacá-lo à internet e o outro (supostamente o coordenador) comeu-o mesmo assim. “Prontos”, foi isso. Atende o telemóvel. Sim, estou aqui. Mas não está. Desligou. Voltou a falar do coordenador e os outros riram-se. E entre frases sincopadas e expressões abreviadas, os quatro entretiveram-se a palavrinhar numa tarde de sol, de preguiça e de bem-estar. O leitor do Jerusalém recomeçou entretanto a leitura mas foi interrompido, de repente, por uns pés, que surgiram em cima da cadeira que estava precisamente junto a si: pertenciam a um homem com os seus sessenta anos que, mal se sentou na esplanada, se descalçou. Imediatamente a seguir, desdobrou o jornal. O castanho das meias de lã não combinava com o intenso amarelo do sol. Estava acompanhado pela esposa que pediu um gelado. Foi a única frase que o leitor lhe ouviu dizer: “traga-me um gelado de morango”. E a conversa daquela mesa vizinha, perturbada pelo fresco do fruto vermelho e por um jornal português cheio de aventuras e desventuras, morreu antes mesmo de nascer. O casal não conversou. Emitiu, de vez em quando, um ou outro sinal de uma frase sincopada ou expressão abreviada, de que já falei a propósito dos jovens. E a leitura prosseguia, a leitura do texto do Gonçalo M. Tavares, que não foi copiado da internet e que descreve muitos aspectos do ser humano, não se circunscrevendo apenas a uns pés forrados com umas meias de lã, num dia de muito calor. As conversas de esplanada têm desculpa. Fazem parte do domínio do lazer, do descanso e da inércia. Entre uma anedota, um episódio engraçado que se quer contar ou uma desgraça que se partilha, há lugar para a desconversa ligeira, oca, sem sentido. Mas a designação de “conversas de esplanada” só tem sentido em confronto com uma outra, como, por exemplo, “conversas úteis” – que são as que ensinam, esclarecem, elucidam e transportam o ouvinte para um mundo mais azul e que, por isso, deviam ser ouvidas por todos com atenção. São conversas alheias mas com um fim social qualquer. Ora o que se verifica no nosso país é a proliferação das conversas de esplanada em locais que não são esplanadas. São locais sérios, mas que têm admitido palavras ocas, entrevistas sem sentido e considerações destituídas de valor, “tipo”… “topas?”, a que se acrescenta nos bastidores: achas que consegui conquistar o público? Infelizmente, o público ouve cada vez menos a conversa alheia. Nos dias que correm, a única coisa que muda numa suposta “conversa séria”, em relação à “conversa de esplanada”, é a cor das meias dos interlocutores… em vez do castanho de lã, temos os mais finos preto ou cinza.