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Correio da Educação

Correio da Educação

27 Set, 2010

ECOS DA IMPRENSA

Sabedoria


Ouça um bom conselho...

 

Palavras da mãe, dos pais, de livros ou sabedoria popular, dadas de graça, como os conselhos de Chico Buarque, ou quase impostas. Pessoas com sucesso em Portugal dizem quais as sugestões que mais marcaram as suas vidas. Eduardo Lourenço (Foto: Nélson Garrido) Zé Pedro, guitarrista dos Xutos e Pontapés: "Escolhe uma profissão de que gostes" Zé Pedro está a conduzir e não hesita muito quando é questionado sobre qual foi o melhor conselho que recebeu. "Veio dos meus pais, que sempre me incutiram a ideia de que ser feliz na profissão era o mais importante", diz o guitarrista dos Xutos e Pontapés. "Desde cedo, fui muito picado pela minha mãe, que sempre achou que eu tinha muito jeito para as artes." Não houve conversas de escolher uma profissão para o futuro, uma coisa certa. "A minha mãe teve um papel muito grande", lá concede Zé Pedro. "O meu pai era militar, desconfiava talvez", admite. O interesse de Zé Pedro pela música começou cedo, mas não descobriu logo o que fazer com ele. "Comecei a interessar-me por música muito cedo, a comprar discos aos 11, 12 anos." "O primeiro single foi aquele tema de gospel, Oh Happy Day, era viciado naquilo.

O primeiro álbum foram os Chicago III [álbum epónimo da banda americana]", lembra. "Comprei muitos discos." A música era uma obsessão. Zé Pedro ainda escreveu sobre música no suplemento "A Mosca" do Diário de Lisboa ("tinha um tio director", diz). Mas só mais tarde, por volta dos 20 anos, é que começou a aprender a tocar guitarra. "Os meus pais foram os primeiros a incitar-me. E o grande impulso para eu tocar veio dessa ideia que os meus pais me incutiram e que, se tivesse de resumir, seria: "É essencial seguir o coração"." Porque "se não formos felizes profissionalmente, isso reflecte-se em tudo: nos amores, nos filhos...". Zé Pedro rejeita "aquele discurso de escolher um trabalho que vá dar muito dinheiro, que tenha futuro...". Para quê?, pergunta. "Se uma pessoa não gosta do que está a fazer, não vai ser grande profissional, e aí o que é grande futuro? É zero. Ana Bacalhau, vocalista da banda Deolinda: "Trabalha primeiro, diverte-te depois" O primeiro conselho que Ana Bacalhau diz que foi fulcral para o seu sucesso (e da banda Deolinda) foi qualquer coisa como "trabalha primeiro, diverte-te depois". O segundo condiz mais com a imagem da vocalista, ou com a personagem da banda que protagoniza: "Sê determinada." "Os dois melhores conselhos que recebi vieram dos meus pais", diz Ana, em grande velocidade, no telefonema com a Pública. "Um tem a ver com ter uma ética de trabalho forte e outro com ter determinação." Explica: "Quando andava na escola primária, eu gostava muito de banda desenhada. Mas a minha mãe fez um acordo comigo: enquanto houvesse aulas, eu não lia banda desenhada. Ela escondia os livros (eu sabia onde estavam mas não ia lá) e eu não lia (podia ler outras coisas, claro, mas não aqueles livros). Ao fim-de-semana, estudava, ao sábado desde a hora do almoço até à hora de jantar. E a banda desenhada ficava para as férias." Ou seja: "Só depois do trabalho feito é que havia divertimento." E esta maneira de trabalhar, e de viver, acompanhou-a sempre: "No liceu, na faculdade, no trabalho - e na música, é preciso trabalhar muito, preparar, ouvir muita música... e sempre me habituei a trabalhar primeiro e divertir-me depois." O outro conselho veio no fim do liceu, quando Ana Bacalhau queria entrar para uma banda, uma ideia a que os pais responderam com um misto de pedido e conselho: tirar um curso primeiro. "Tiras o curso, depois, daqui a cinco anos, quando te conseguires sustentar e se tiveres a mesma ideia, então tomas essa decisão", disseram-lhe. E ela assim fez. Foi tirar o curso, de Línguas e Literaturas Modernas na variante Português/Inglês, que acabou em 2001, e a vontade não esmoreceu. "Já não fiz o estágio para ser professora - ser professora ia impedir-me de fazer música. Primeiro, porque iria ter de andar de um lado para o outro e não podia ter uma banda, e depois ia esforçar muito a voz", conta. Mas teve empregos: foi professora de Inglês numa escola privada, mais tarde arquivista no Ministério das Finanças e teve a sua primeira banda, os Lupanar. "E com a Deolinda [a banda é sempre tratada no feminino e não no plural] consegui ter independência financeira através da música, que era o que queria." Não lamenta ter tirado o curso, pelo contrário: "É uma mais-valia para o que faço hoje, saber ler o que lá está dentro", diz. A banda tem tido um sucesso feito de lugares no topo dos tops (lançou este ano o segundo disco, enquanto o primeiro, duplo platina, se mantém nos mais vendidos), de destaques na tabela de World Music do Sunday Times (foi o terceiro álbum do top ten), de prémios na revista de world music Songlines e de salas de concerto esgotadas. "Acho que para isso contribuíram estes dois conselhos dos meus pais: ter uma forte ética de trabalho e determinação", diz Ana Bacalhau. "Sorte também, claro. Mas essa não se pode dar em conselho." Xavier Martín, presidente executivo da Oni: "Cria como um deus, lidera como um rei e trabalha como um escravo" O presidente executivo da Oni Communications, Xavier Martín, tem fama de se lembrar de citações, ditados e provérbios com alguma frequência. O melhor conselho que recebeu veio de um "empreendedor em série", Alex Vieux, que era o proprietário da empresa Dasar, sediada em Palo Alto, na Califórnia, em que Martín trabalhou em 1994/95 (Vieux é hoje o editor da Red Herring, publicação sobre empresas de alta tecnologia). O conselho era este: "Cria como um deus, lidera como um rei e trabalha como um escravo." "Julgo que este ensinamento encaixa perfeitamente nos desafios que diariamente enfrentamos no mundo das telecomunicações, em que precisamos de muita ambição e de pouco ego para conjugar as doses certas de imaginação, liderança e esforço que nos permitam diferenciar-nos num mercado hipercompetitivo e gerir equipas extremamente talentosas com o nosso próprio exemplo", escreveu Martín no email que enviou à Pública. O presidente executivo da Oni, que tem no currículo vários cargos na espanhola Telefónica, a vice-presidência da Marketing para a Europa na Dasar (que organiza eventos como o European Technology Roundtable Exhibition, que tem contado, por exemplo, com a participação regular de Bill Gates) e que fez ainda parte do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Barcelona-92, considera que "o sucesso não é uma grande ocorrência, são milhares de detalhes bem executados em cada dia, com doses dos três elementos que este conselho revela". João Pina, campeão europeu de judo: "Tudo é possível com o apoio materno-emocional" João Pina diz que, de todas as orientações que já recebeu, o factor essencial para o seu sucesso no judo foram mesmo os conselhos da mãe. Ou, como ele diz, "o apoio materno-emocional". O judoca explica que o ânimo é muito importante no judo. "Às vezes podemos estar em óptima forma física, mas falhar a parte psicológica." E, no seu caso, a mãe é uma grande fonte de equilíbrio, mesmo que não perceba nada de judo. Entre as várias vezes que os conselhos da mãe foram determinantes, João Pina cita o exemplo dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004. A mãe recortou um anúncio da Adidas que dizia "O impossível é nada. E, antes da competição, deu-lhe o recorte. "Eu nem tinha reparado no anúncio. Mas ficou a mensagem: não há impossíveis." Houve outras alturas em que a mãe foi essencial. "Não é uma frase isolada, um conselho isolado", mas sim este tipo de incentivos, de gestos, de presença que ajudam João Pina. "É uma estabilidade emocional que na competição faz muita falta", explica o judoca, que depois de vários resultados bons chegou este ano, aos 28 anos, a campeão europeu e que está agora no Japão para competir no Campeonato do Mundo 2010. "A minha mãe foi muito importante, especialmente quando as coisas não corriam tão bem", diz. "Não no aspecto técnico, mas na forma de encarar a competitividade e os combates." João Pina explica que a mãe não está sempre presente nas suas competições. "Acompanha de um modo muito soft, não anda em cima, mas se eu precisar está lá." A mãe gosta muito de judo então? "Não!", diz o atleta a rir. "Gosta porque eu faço." Gonçalo Quadros, empresário: "Junta-te aos melhores" O conselho dado a Gonçalo Quadros tornou-se numa mensagem hereditária. Foi a mãe que lho deu e já está a ser transmitido às duas filhas: "Junta-te aos melhores." "Estou a passar o conselho para as minhas filhas porque teve relevância para a minha vida", disse à Pública por telefone. É uma ideia iluminista que o director executivo da Critical Software carrega consigo e o ajudou em vários momentos-chave da sua vida, como enveredar pelo doutoramento ou fundar a empresa de tecnologia com sede em Coimbra, que ficou famosa pela colaboração com a NASA, e hoje se estende até ao Brasil, Moçambique, Reino Unido, Roménia e Estados Unidos da América. "A minha mãe dizia-me que a melhor riqueza que eu devia alcançar era a sabedoria e isso seria facilitado seguindo o exemplo dos melhores", explicou. "A nossa capacidade de evoluir depende muito das nossas referências e as nossas referências baseiam-se em quem nos rodeia." Na altura que fez o seu grande trabalho de engenharia na Soporcel, onde tinha um lugar estável, foi a frase da mãe que determinou o rumo da sua vida. "Resolvi sair da empresa e fazer um doutoramento [em Ciências de Computação na Universidade de Coimbra]." Mas quem são os melhores? "Há algumas pessoas que são exemplares, que nos marcam de uma forma muitíssimo forte. Recebi dessas pessoas não apenas conhecimento mas valores", diz o empresário, referindo-se por exemplo a alguns professores que teve. Gonçalo Quadros não consegue explicar como é que se encontram estas pessoas, mas aponta para os detalhes, para o brilho. "A coerência, o exemplo, o facto de fazerem aquilo que dizem". Estas pessoas servem como uma inspiração e Gonçalo Quadros continua a escolher um percurso ao lado delas: "Quando lancei a Critical [Software], fi-lo porque achava que estava a lançar uma empresa com pessoas melhores do que eu." Carlos Fiolhais, físico: "Escolher o terceiro caminho" A única frase que o físico e professor catedrático da Universidade de Coimbra considera aproximar-se de um conselho leu-a num livro e é em si mesmo um anticonselho. "Entre dois caminhos, escolhe sempre o terceiro", lembra Carlos Fiolhais à Pública. "Na área dos negócios, é o pensar out of the box", acrescentou. É uma ideia que sugere utilizar a nossa criatividade para olhar para o mundo fora das fronteiras que alguém estabeleceu por nós. "Somos confrontados com problemas que parecem ser binários, e às vezes há uma escolha ao lado que é a resposta." Fiolhais conta que se lembra de ler a frase num livro, quando era adolescente. Era um conselho dado pelas mães judias aos seus filhos. O físico associa esta frase à história dos judeus, quando durante a II Guerra Mundial as escolhas eram entre lutar e entregar-se aos alemães - e nas duas situações o destino seria trágico. A terceira opção podia ser fugir.Na realidade científica, o terceiro caminho é muito utilizado e pode ser de ouro. "Niels Bohr, prémio Nobel da Física, um dos mais importantes físicos do mundo, talvez tão importante como Einstein, aconselhava sempre os seus alunos a pensar ao lado. O génio é isso, é ir para o caminho que não nos é dado." O físico de Coimbra conta que faz no seu trabalho científico este esforço permanente de "pensar ao lado", de verificar sempre a possibilidade contrária do caminho A ou do caminho B. "Diz-se que o contrário de uma frase absoluta é outra verdade absoluta." Contrapõe logo de imediato: "O contrário disso tudo não será também algo viável?" Carlos Fiolhais explica que mesmo na sua vida particular este conselho já o ajudou: "Todos temos problemas, e pensamos que a solução ou é uma coisa ou é outra..." Fica de pé atrás quando se fala em conselhos tradicionais. "São vias de obediência, às vezes de uma forma amigável e paternalista, mas são autoritários", diz. "O livro O Segredo [de Rhonda Byrne] é um manual de conselhos, é puro lixo intelectual. Desconfio sempre de conselhos." O físico prefere servir-se de referências, de pessoas como os seus pais ou alguns professores que se tornaram exemplos. "Mais do que ouvir as palavras de orientação, o importante é olhar para a vida das pessoas", defende, continuando na sua senda de mostrar que a verdade e o seu contrário são compatíveis. "Tenho 54 anos, já tenho idade para não dar conselhos." Hélia Correia, escritora: "Não ter pressa de crescer" A escritora Hélia Correia continua a desenhar como se tivesse oito anos, por isso essa é a idade que assume ter, pelo menos interiormente. O conselho que a mãe lhe deu quando era criança foi seguido à risca, extrapolado. "A minha mãe disse-me que não tivesse pressa de crescer porque mesmo numa vida que durasse 60 anos eu teria 20 anos para ser menina e 40 para ser mulher e a menina estava sempre em posição de perda." A escritora levou o conselho à letra, e continuou a viver segundo os parâmetros da infância. "O importante é o não aprender", disse Hélia Correia à Pública, que hoje tem 61 anos cronológicos. Não aceitar as regras da convenção social, os valores do bom senso, a medição dos ganhos e perdas nas relações. "Não adquiri nada disso, nem sequer a aprendizagem da experiência", acrescentou. "Tudo é sempre novo, não tiro lições." Com isto manteve aquilo que só conhecemos nas crianças, o pensamento mágico, as crenças, o animismo, que diz ser a sua verdadeira religião. Onde tudo é vivo, onde tudo fala. Um imaginário que não está separado da actividade pela qual é conhecida. "É um acontecimento a escrita. Faz parte do meu mundo na medida que também é uma coisa viva que me visita, como os outros vivos que me rodeiam e não são pessoas", explica Hélia Correia, que publicou este ano o romance Adoecer sobre a relação entre a musa e poeta Elizabeth Siddal e o pintor Dante Gabriel Rossetti, que viveram na Inglaterra do século XIX. Segundo a escritora, este estado de infância foi um seguir natural, ou talvez um ficar, que lhe permitiu manter uma relação muito privilegiada com as crianças. "As crianças tratam-me como uma criança mais nova, têm um instinto de protecção sobre mim, as relações desenvolvem-se assim e sinto-me bem nesta posição", explicou. O mundo dos adultos não interessa a Hélia Correia, que diz não o entender. Há cerca de 12 anos foi-lhe oferecido outro conselho que ainda a afastou mais deste espaço dos adultos. Hélia Correia entrou no mundo dos computadores com a ajuda do afilhado, Carlos César, que hoje tem 25 anos. "Fazíamos muitos jogos de computador. Ele fazia, porque eu não conseguia compreender nada, tinha muito medo de mexer no computador, de carregar num botão e fazer desaparecer tudo", explicou a escritora. As palavras do afilhado transformaram esse sentimento: "Mexe à vontade, não tenhas medo de mexer em nada porque não há nada de muito perigoso que possa acontecer." Desde aí o mundo da informática tornou-se muito importante para as pesquisas da escritora. A voz do afilhado funcionou como "uma mãozinha estendida numa floresta" que lhe permitiu "entrar num universo muito mágico, num prolongamento da magia muito bonito". Onde não há medo.Como diz a escritora: "Podemos criar outra civilização para nós mesmos." Eduardo Lourenço, filósofo: "Receber conselhos para não os seguir" A Pública esperou uma semana para saber qual o conselho mais importante que Eduardo Lourenço recebeu durante a vida, mas o filósofo não se lembrou de nenhum. Aliás, para este português que vive em França e que já ganhou prémios, medalhas e doutoramentos honoris causa devido ao seu percurso académico, "os conselhos são bons mas em parte é para não os seguirmos". A explicação já vem. Eduardo Lourenço diz que o que mais se aproxima de um conselho foi um professor de História reconhecer e exaltar a sua predilecção pela disciplina à frente de toda a turma, quando ele tinha 15 anos. "Essa distinção que se recebe assim, isso é que é uma coisa importante", diz o filósofo, acrescentando que este reconhecimento tem impacto posteriormente, nas escolhas que se fazem durante a vida. "Naquele tempo, a História não tinha muitos rapazes a interessarem-se e eu tinha um gosto particular por isso, que vinha da minha infância, dos livros de História que eu lia como se fossem romances." Mais tarde foram os professores de Filosofia que teve durante a faculdade que o marcaram. Pessoas como Joaquim de Carvalho e Sílvio Lima. De quem Eduardo Lourenço diz ter recebido uma grande educação e interesse pelos assuntos da cultura e do pensamento. É aqui que vem a explicação. O que estes professores davam não eram conselhos, eram o contrário de conselhos: "Não pretendiam inculcar-nos a religião ou a filosofia deles, queriam unicamente iniciar-nos para pensar de uma forma mais aberta e livre."

 

Público on line, 06.09.2010 - 11:24 Por Maria João Guimarães, Nicolau Ferreira