A função da poesia
A proximidade do fim do século e também do fim do milénio não afeta, aparentemente, em nada a função da poesia no quadro geral das literaturas e das culturas. A poesia não tem, propriamente, uma função. Ela é inútil, não se constituindo em encargo ou serviço. Sua inutilidade atravessa regimes políticos diversos bem como diferentes economias. Regimes políticos totalitários têm, muitas vezes, o poder de explicitar a capacidade de resistência da poesia e dos poetas mas não chegam efetivamente a alterar a função da poesia.
Estas situações, de inutilidade, de obsolecência, de arbitrariedade, de violência e de morte, definem um pouco o que é a poesia — neste final de século/milénio. Talvez, resida aí a sua função: a de enfrentar situações extremas, de sobreviver em abismos, em limites — sem objetos, objetivos e referências imediatas. Nesta perspectiva, o início do poema Dissolução, de Carlos Drummond de Andrade, incluido na sua coletânea Claro Enigma (1951), coopera na definição do lugar ocupado pelo fenómeno poético no mundo: "Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada / Pois que aprouve ao dia findar, / aceito a noite / E com ela aceito que brote / uma ordem outra de seres / e coisas não figuradas...".
Interessa à poesia - hoje - na perspetiva dialética tradição/inovação (e só a poesia inovadora poderá sobreviver, inovadora também em relação aos "anticânones" forjados por movimentos da década de 50 e 60) esta ordem outra de seres e coisas não figuradas. A existência irreal da poesia (neste mundo cada vez mais dominado pelo capitalismo e pelos mercados globais) propõe a ela — poesia — que se defronte com questões que ninguém mais, nem mesmo a Filosofia, quer se defrontar: o insucesso, a obsolecência, a violência, a morte, a impotência, o isolamento — uma ordem outra de seres . Tanto melhor, será a poesia que se dispuser a responder estas questões. Ou, entre nós, por exemplo, observar o itinerário de desconstrutor de ortodoxias, de um Haroldo de Campos. Ou, ainda, como no "verso" de Mário Faustino, concentrador de modernidades e pós-modernidades: "Sinto que o presente mês me assassina / Os derradeiros astros nascem tortos".
Robert Creeley tem um poema que também coopera na configuração do papel da poesia hoje: "Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí está o lugar da poesia e do poeta: bosque/mundo "onde ninguém vai". Tensões. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa do seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao "cultivar" tensões, afasta a poesia do lugar comum das coisas deste mundo. Em conclusão. Investir no particular, numa perspectiva universal, mas não investir no "universalizante". Brasileiro, não nacional. Investir na tradução de contemporâneos (uma forma simples e arriscada de diálogo). Trabalhar com critérios de qualidade e até mesmo reinventá-los. Dialogar com a tradição, mediata ou menos mediata, num horizonte de inovação (inovação, por exemplo, não é cópia de Mário de Andrade em nome da negação de poéticas dos anos 50). Enfrentar estas situações de impotência, morte, violência, obsolecência e inutilidade são alguns dos desafios da liberdade da poesia que queira ter algum significado neste fim de milénio: "All clocks are clouds / parts are greater then the whole". Ou "Todos os relógios são nuvens / partes são maiores que o todo" — como nas linhas de Michael Palmer.
In http://regisbonvicino.com.br / prosa crítica. Régis Bonvicino nasceu na cidade de São Paulo, em 25 de Fevereiro de 1955. Formou-se em Direito pela USP, em 1978. Estreou na imprensa, já como escritor, em 1975, no Jornal do Arena. Trabalhou como articulista do Jornal da Tarde, da Revista Isto é, e da Folha de S. Paulo até 1989. Entre suas participações em leituras de poesia, no âmbito internacional, destacam-se as atuações em Buenos Aires (1990); Miami (Miami Book Fair, 1992); Copenhague (1993); […]. Fez leituras em Iowa City (2000), com Michael Palmer, e em Chicago; participou do IV Encontro Internacional de Poetas de Coimbra (2001). Registe-se ainda a sua participação na Feira do Livro da Cidade do México (2004). Esteve em Santiago do Chile e Barcelona, em 2007, fazendo igualmente leituras. Em 2009, esteve na Penn: University of Pennsylvania, de Filadélfia, e em Poets House de Nova York.
Fundou, em 2001, e codirige, ao lado de Charles Bernstein, a revista Sibila, que, em 2007, tornou-se exclusivamente eletrónica : <http://www.sibila.com.br>.