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Correio da Educação

Correio da Educação

22 Jun, 2011

Ilustrar

* Inês Silva



Numa sessão de formação de professores de português num destes dias, partilhava-se a ideia de que era muito importante explorar as ilustrações dos livros junto dos alunos mais novos (1.º e 2.º ciclos). Na tarde anterior, e no lançamento de um livro infantil, ouvia-se a ilustradora dizer que sentiu muito medo ao ser confrontada com a realidade de ter de ilustrar uma história escrita por outra pessoa. “E se eu não conseguir representar o mundo que a autora imaginou, quando escreveu a história?”, disse ter pensado várias vezes.

 
A ilustração ganhou uma importância notória nas últimas décadas, no âmbito do livro infantil, o que leva a crer que, sem ilustração, o livro se torna mais aborrecido, mais difícil e que, por isso, não proporciona prazer. Não é verdade. A ilustração, de facto, integra a comunicação não verbal e, como tal, tem uma significação própria que proporciona percursos de leitura no âmbito da sua especificidade. É extremamente importante. No entanto, não substitui a história nem a verte plenamente.


Desde o início da sua vida que a criança ouve histórias. São contadas pelos pais, pelos tios, pelos avós. E quando o faz, ela não tem outras imagens para além das que simbolicamente cria no seu imaginário. Precisa de desenhos? Não. A narração oral envolve-a numa espécie de bruma de significação, onde ela consegue discernir os contornos de tudo o que é dito, sem precisar de demonstrações por parte de um lápis afiado.
Depois, no pré-escolar, por força do peso da instituição “escola”, a narração oral é francamente substituída pelo livro, como forma de fomentar a alfabetização e a cultura livresca. O educador, que até conta umas histórias aos filhos e se regozija com o prazer que esses momentos lhe provocam, passa a ler histórias e a mostrar as páginas das ilustrações aos meninos sentados à sua frente, num ritmo pausado e num gesto pesaroso e mecânico. As histórias são escolhidas muitas vezes em função do desenho, muito mais visível do que o texto, que se quer curto e evidente. O espaço dado para a criatividade, sonho, emoção, desejo, aquando da audição de uma boa história, é esbatido muitas vezes no cantinho da leitura ou na hora do conto pela imagem.


A criança, desta forma, é obrigada a olhar a ilustração como um desenho finito, que representa fielmente determinada parte do conto. Tudo está representado pelo desenho. As cores e as formas são mostradas com contornos rígidos. A imaginação fica proibida de criar o seu próprio desenho, conforme a visão do mundo de cada criança.


É inegável que ler imagens é um eficiente caminho para a literacia de um indivíduo no mundo de hoje. Mas no processo de leitura destas tem de se incluir a criatividade, o espírito crítico e a capacidade de discernimento entre o que é real e o que é ficção, ensinando-o a usar um filtro que o leve a ver as imagens como imagens [de forma a perceber o que é verdadeiro, o que é fingido, o que é representado ou mesmo adulterado]. O indivíduo pode adquirir esse filtro na escola, que é a grande responsável pelo desenvolvimento de uma competência leitora eficaz. Deve ela, pois, pôr as crianças e jovens a pensar, isto é, a refletir, a imaginar outros mundo para lá dos que são impostos pela ilustração, para que se transformem em adultos capazes de ler verdadeiramente as histórias que os rodeiam, a publicidade, a propaganda política balofa, que tem sobrevivido nos últimos tempos à custa da “imagem ilusória”, enganadora do cidadão, por mais prevenido que este se considere.
Nem o ilustrador se deve iludir, julgando que consegue “representar o mundo que a autora imaginou”, nem o educador/professor deve privar os seus educandos de desenvolverem capacidades de receção das imagens e ilustrações. Ter consciência de que nem tudo o que é “representado” corresponde à realidade é um dos caminhos para detetar mentiras, numa altura em que anda meio mundo a enganar o restante.

 


* Inês Silva - Doutora em Linguística (Sociolinguística). Professora Adjunta convidada na Escola Superior de Educação de Santarém. Tem realizado estudos sobre a escrita dos alunos. É autora de várias publicações de caráter didático e de caráter linguístico. Na ficção, publicou o romance: A Casa das Heras.