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Correio da Educação

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Encontrei na época pascal uma antiga aluna. Para além da expressão da saudade que consigo entrever nos olhos dos alunos que verdadeiramente souberam viver a escola e os seus professores, ouvi da sua boca algo que me fez reflectir: “Sabe professora, só na faculdade percebi como vamos bem preparados. Quase ninguém consegue fazer apresentações orais e nós, os que estivemos nesta escola, fazemo-lo com muita facilidade!” 

O ensino da oralidade teve, ao longo do século XX, uma importância muito reduzida. Face ao domínio do saber livresco, num prolongado contexto de opressão da liberdade de expressão, a importância do saber falar definhou e acabou por se diluir face ao peso do ensino da literatura na aula de português. Mais recentemente, nomeadamente com os programas de Língua Portuguesa para o ensino básico, de 1991, voltou a contemplar-se no texto programático o “ouvir e falar” como um conteúdo de ensino explícito. Todavia, entre as intenções subjacentes ao programa e as práticas escolares sempre se verificou um denso abismo que não raro relegou para segundo plano a presença da oralidade na escola. O programa de Português para o ensino secundário, de 2001, veio reforçar a importância da expressão oral, que surge agora reiterada pelos novos programas para o ensino básico que entrarão em vigor em 2010-2011.

Sabemos, porém, que a mudança de mentalidades é um processo demorado e que, por isso mesmo, só muito lentamente as práticas lectivas poderão acordar um lugar de primeiro plano ao ensino-aprendizagem da oralidade. Antes de mais, é necessário que se desfaçam mitos que se instalaram na origem do modus operandi do professor de Português. Estes têm sobretudo a ver com uma noção partilhada de gestão temporal. No centro da aula de Português encontra-se indiscutivelmente o texto, e bem, não o discuto, mas esta presença é de tal forma avassaladora que conduz constantemente o professor à ideia de que abordar a oralidade na sala de aula (ou outras ditas franjas do programa) é perder tempo que se poderia dedicar ao considerado essencial. O facto de os exames nacionais só avaliarem as competências da leitura, da escrita e do funcionamento da língua em muito contribuiu para a criação desta noção de conteúdos centrais e, logo, mais importantes na gestão da planificação escolar. Propagou-se também uma ideia difusa que leva a crer que dar a palavra ao aluno, por exemplo numa interacção de pergunta-resposta, é já trabalhar a oralidade. Por outro lado, o peso da tradição de um certo modelo de ensino do Português continua a impor-se face às novas perspectivas do que implica o ensino da língua materna. São muitos os ventos adversos que se opõem à maré.

Mas desenvolver a expressão oral será realmente importante? Antes de mais é necessário esclarecer que a missão da escola passa por desenvolver o oral formal e não promover o informal, que se desenvolve naturalmente nas interacções quotidianas que todos mantemos em contexto social. Convenhamos também que desenvolver a oralidade não se pode resumir a um espaço de apresentação-defesa de trabalhos que foram executados mais ou menos autonomamente pelos alunos. Julgo que, para ser profícua e efectiva, a expressão oral deve centrar-se sobretudo em três tipologias textuais: o texto narrativo, o texto explicativo e o texto argumentativo.

Narrar é uma ferramenta natural do ser humano. Aprender a contar histórias é uma forma de desenvolver a capacidade de estruturar, organizar, sequencializar relatos, memórias, recontos, eventos biográficos ou outros. As fundações do acto de se exprimir oralmente passam, a meu ver, por textos desta natureza.

Os textos de natureza explicativa são, por outro lado, produções muito adequadas ao contexto escolar, transversais a diferentes disciplinas. O seu domínio configura-se como uma ferramenta fundamental para o sucesso em diferentes áreas do conhecimento humano, tanto na apresentação de conceitos/conteúdos como no seu aprofundamento. Falar é transmitir conhecimentos, todos o sabemos.

Argumentar é uma capacidade essencial ao ser humano. Saber sustentar uma ideia, conseguir reflectir sobre a sua validade, conseguir transmitir um ponto de vista, adequando o discurso a diferentes públicos, é uma forma máxima de superioridade intelectual, expressa por meios orais.

Não podemos esquecer que uma parte significativa dos estudantes que passam pelas nossas escolas viverá num mundo onde a oralidade tem uma importância muito superior à escrita. Saber falar e compreender o que se ouve é claramente uma forma de poder e de afirmação social. Não passará a função da escola obrigatoriamente por este domínio? E não esqueçamos que ensinar a exprimir-se do ponto de vista oral exige o domínio de conteúdos, a mobilização de saberes. A gestualidade, a expressividade, o ritmo são apenas alguns dos domínios de suporte do discurso, onde se centra efectivamente o núcleo fundamental da aprendizagem da oralidade.

O fruto de todo o trabalho de um professor só à distância se entrevê. A maioria das vezes, o impacto da nossa acção quotidiana dilui-se numa evolução constante que, por nos encontrarmos demasiado perto, não conseguimos discernir claramente. Qual quadro impressionista!

 

Carla Marques - Mestre em Linguística e doutoranda na mesma área; autora de várias publicações de carácter didáctico e de carácter linguístico: docente na Escola Secundária/3 de Carregal do Sal.

 

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