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Correio da Educação

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* Carla Marques



A língua já existia antes de cada um de nós e, contudo, sentimo-la nossa. A escrita passou por inúmeras fases, que muitos desconhecem, e foi construída por homens cuja identidade e crenças se perderam na memória. Homens atrás de homens, escritos atrás de escritos, séculos após séculos legaram-nos uma herança que sabemos de todos, que sabemos existir para além de nós, antes e depois, mas que queremos nossa. Não gostamos que nos alterem a ordem das almofadas da sala ou dos livros da biblioteca, porque é a nossa ordem, porque são os nossos objetos. E porque a língua é nossa, de cada um de nós, não gostamos que mexam na nossa língua.


As reações afetivas à mudança que introduz o novo acordo ortográfico têm sido muitas e diversificadas, mas todas passam pela relação umbilical que estabelecemos com a língua na qual nos criamos e através da qual aprendemos a pensar e a exprimir os nossos pensamentos.

 

 

Não podemos, porém, esquecer que a ortografia mais não é do que um conjunto de regras que permitem harmonizar a escrita entre os que escrevem numa mesma língua. Racionalmente, a escrita é apenas isto: um conjunto de regras. Estas regras, praticamente inexistentes em tempos idos da história da ortografia, resultam de um percurso que a própria língua seguiu ao longo de muitos séculos. A língua em que hoje escrevemos já se grafou de inúmeras formas: homem já foi omee ou home, erva já foi herba, manhã já foi manhaã ou manháá, céu já foi ceeo e dói, dooe. Até ai já foi ay! Os Lusíadas que lemos hoje não foram escritos com esta ortografia, nem o Sermão de Santo António aos Peixes, nem Os Maias, nem mesmo a Mensagem. A mudança é inerente à própria língua e, consequentemente, à própria ortografia.

 

Nada do que se vive atualmente é sequer inovador na história da relação dos homens com a sua língua. Sempre houve quem se queixasse de que os utilizadores da língua não a sabiam escrever, sempre houve quem resistisse à mudança. Porque a língua é nossa.

 

Garrett, no século XIX, no prefácio de Camões, poema inaugural do romantismo, lamentava-se:


«Sôbre a orthographia, (que é força cada um fazer a sua entre nós, por que a não temos) direi só que segui sempre a ethymologia em razão composta com a pronúncia; que acentos, só os puz onde, sem eles, a palavra se confundiria com outra; e que de boamente seguirei qualquer methodo mais acertado, apenas haja algum geral, e racionável em portuguez: o que tam fácil, e simples sería, se a nossa academia, e governo em tam importante cousa se empenhassem».
Almeida Garrett, Camões. 1825.

 

E quando, em 1911, se publicou a Reforma Ortográfica, da responsabilidade de Gonçalves Viana, as reações afetivas não deixaram de se sentir:


«Na palavra lagryma, (...) a forma do y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; substituindo-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal.»
Teixeira de Pascoaes, in A Águia, citado por Francisco Álvaro Gomes, O Acordo Ortográfico. Porto, Edições Flumen e Porto Editora, 2008, p. 10.



Temos o direito de lutar pela nossa língua e pela sua manutenção? Temos, porque a língua é nossa! Mas não poderemos esquecer que a mudança é natural, mesmo quando imposta pelos homens. Afinal, a ortografia não foi sempre uma imposição dos homens?

 

 

* Doutora em Linguística (na área da argumentação oral); investigadora do CELGA (Centro do Linguística Geral e Aplicada, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra); autora de várias publicações de caráter didático e de caráter linguístico; docente no Agrupamento de Escolas de Carregal do Sal.

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