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Correio da Educação

Correio da Educação

* José Matias Alves

 

Há mais de 20 anos que se vem reiterando a vontade política do ensino profissional mobilizar 50% dos alunos que frequentam o ensino secundário. No contexto de uma escolarização obrigatória durante 12 anos, torna-se mais premente revisitar este tópico e perceber por que motivo tem sido impossível atingir esta meta.


A razão maior é simples: não se tem atingido esta meta porque o ensino profissional não tem valor social, empresarial, familiar para atrair as pessoas. E por que é que não há este valor e esta força de atração?

 

Por duas razões maiores: i) porque os nossos empregadores não oferecem, em regra,  aos diplomados por este ensino uma carreira profissional cativadora (em termos de prestígio, status, remuneração e carreira, provavelmente por não verem as mais valias desse conhecimento para o aumento da produtividade organizacional; ii) porque o sistema de ensino trata esta via de ensino como a via para os deserdados do sistema regular não lhe conferindo a qualidade e o prestígio escolar que lhe seria devido.

 

Daqui decorre que as famílias só escolhem esta via como segunda oportunidade e quando não veem alternativa de vida escolar nesta faixa etária.
Para inverter esta situação é necessária uma política de natureza sistémica que equacione, na teoria e na prática, as seguintes linhas de ação:


i) Agir junto do tecido empresarial que pode recrutar diplomados pelo ensino profissional no sentido de demonstrar que o conhecimento técnico e tecnológico pode ser uma base imprescindível para aumentar a produtividade, a competitividade, a internacionalização da atividade. O conhecimento é o ativo mais importante das empresas, a tábua de salvação, nomeadamente em momentos de crise. Sem esta mudança estrutural de visão, a mudança tende a não ser possível.


ii) Abrir a escola aos potenciais empregadores. Esta abertura deve assumir um duplo sentido: abrir para eles conhecerem as qualidades do trabalho formativo que se vai realizando e compreenderem as vantagens do uso laboral dessa mão de obra; abrir para eles poderem participar na tomada de decisões em relação à oferta educativa e ao desenvolvimento do currículo.


iii) Configurar a oferta formativa mais segundo a lógica das necessidades de qualificação nos diferentes mercados que podem acolher os diplomados do que segundo a lógica dos recursos existentes (professores, espaços e equipamentos). Nesta configuração, os potenciais empregadores devem ser ativamente auscultados e possuírem o poder de influência nas ofertas de qualificação. A territorialização da oferta através, nomeadamente, dos conselhos municipais de educação, é outro vetor central.


iv) Assegurar um ensino exigente e de elevada qualidade, conjugando as três dimensões essenciais do conhecimento que tem a pretensão de intervir na melhoria dos modos de produção: uma formação geral sustentada, uma formação científica ao serviço da compreensão das técnicas e das tecnologias que estruturam a ação profissional. Este desiderato da coabitação destes saberes é central para a dignificação escolar do ensino profissional e para tornar sustentável a sua capacidade para intervir na requalificação dos modos de trabalhar.


v) Integrar, nas práticas formativas, uma aprendizagem que pratique a alternância formação-trabalho-formação, de modos múltiplos e flexíveis, de forma a enriquecer e fecundar ambos os ambientes e potenciar a construção de um clima de confiabilidade social da formação.


vi) Desenvolver os dispositivos de orientação vocacional e profissional desde o 7.º ano de escolaridade, sobretudo através da descoberta e da compreensão do mundo do trabalho e do mundo da vida.


vii) Disseminar exemplos de boas práticas de aproximação e de interseção entre os mundos da formação e do trabalho, criar incentivos de inserção profissional de diplomados (no quadro desta estratégia de ação global), difundir, de forma massiva, simples e acessível não apenas as redes de oferta, mas as oportunidades prováveis de exercício profissional.


viii) Last not least, integrar nos currículos académicos – nos cursos científico-humanísticos – a dimensão técnica do conhecimento (no sentido do saber fazer criativo), que foi tragicamente arredada na última “grande reforma curricular” e que se constituiu como um grave retrocesso conceptual na ordenação de um ensino secundário cujos percursos deveriam ser globalmente equivalentes em termos escolares.

 

Estas são algumas muito exigentes linhas (não exaustivas) para uma ação de valorização do ensino profissional. Bem se poderá decretar a valorização do ensino e da formação profissional (ao fim e ao cabo foi o que sempre se fez). As lições da história dizem que é inútil. Porque ele só terá valor se for reconhecido pela organização do trabalho. E se não for visto pela organização escolar como o caixote do lixo para os alunos que não têm a capacidade de resistir à mortandade de um sistema ainda organizado para selecionar um certo tipo de elites sociais.


* José Matias Alves é investigador, doutor em Educação e professor convidado da Universidade Católica Portuguesa.

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