Júlio de Jesus Martins
Lisboa, 08/11/1992 - 06/01/1993
UM PROFESSOR DE EXAMES E MANUAIS - ENTRE DOIS REGIMES
Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa, faz igualmente o curso de Ciências Pedagógicas, desta feita na Universidade de Coimbra, e depois o exame de Estado no Liceu de Pedro Nunes. Torna-se professor do ensino secundário, liceal e técnico, trabalhando no Liceu de Faro, no Liceu Normal de Lisboa (Pedro Nunes), na Escola Industrial Machado de Castro e, finalmente, no Colégio Militar.
Entre 1943 e 1945 dirige o Serviço de Pontos para Exames do Ministério da Educação Nacional. Ainda que breve, a passagem por aquele organismo estatal leva-o, numa série de artigos insertos no boletim Liceus de Portugal, a proceder ao balanço de uma das medidas mais emblemáticas do regime salazarista na área da educação secundária: os exames nacionais. No primeiro dos textos que ali assina, reconhece que "nada se encontra ainda escrito" sobre a matéria, apesar das polémicas e da acesa contestação que, ano após ano, são alvo (1943, p. 2437). Fazer a "justa selecção dos alunos", assim como "fiscalizar e orientar devidamente o ensino", são os pressupostos que, a partir de 1930, norteiam a instituição daquela modalidade de avaliação, em oposição ao sistema anterior que é visto como comportando uma maior discricionaridade nas classificações dos alunos.
Embora no já distante ano de 1895 os exames escritos fossem tidos como preponderantes na estrutura da avaliação, a verdade porém é que eles se vinham transformando paulatinamente numa "inútil formalidade", em face do crescente "verbalismo", quer dizer, do enorme peso das provas orais (1943, p. 2441). Importa compreender que, pelo menos até meados dos anos cinquenta, esta insistência nos critérios de uniformidade, justiça e equidade no julgamento dos estudantes, vai sobretudo permitir ao regime salazarista conter a crescente procura do liceu, mantendo a sua primacial vocação de instrumento de reprodução das elites.
Com o selo de garantia científica dado pela psicologia experimental, os exames, agora ao lado dos testes de inteligência, transformam-se no mecanismo que concretiza essa obstrução social. Apoiados nas estatísticas das avaliações, que exactamente se começam a publicar depois de 1943, os textos de Júlio Martins não escondem que as "categorias homogéneas" visam no essencial deixar de fora, logo na admissão, o maior número possível de candidatos, ao passo que permitem a diminuição significativa das reprovações à medida que se vai progredindo nos vários ciclos.
É também por esta via que se vai tecendo a capa de excelência que cobre o ensino liceal no período. Mas quando reflecte apenas sobre a sua experiência docente vemos desencadear-se em Júlio Martins um discurso que, embora recorrente ao longo dos mais diversos contextos, se situa nos antípodas daquele. Um trecho impressivo: "não constitui novidade para ninguém afirmar que os alunos dos primeiros anos dos cursos secundários escrevem, na sua maior parte, com inúmeras incorrecções ortográficas - e isto não obstante a selecção neles operada pelos respectivos exames de admissão" (1961, p. 5).
Júlio Martins é ainda, ao longo de toda a sua carreira, autor de manuais de Português e de instrumentos didácticos para o ensino da Literatura. Neste particular tenta contribuir, com a edição de antologias e selectas (de Camões a Alexandre Herculano, de Gil Vicente a Almeida Garrett), para a resolução de um problema delicado. Se é certo que a Literatura é entendida, como acto contínuo, como um tesouro a convocar nos rituais da socialização nacionalista - é preciso estudar, "com devoção e carinho, a língua portuguesa, em que foi composto o hino dos nossos brios, o poema das nossas glórias" (1940, p. 3) -, não é menos verdade que o campo literário não constitui um património que se ajuste, de imediato e em bloco, aos desígnios do regime salazarista.
Bem pelo contrário, estamos perante um universo com uma manifesta pluralidade de sentidos, passível portanto de apropriações várias, e muito apetecido pelas gerações mais novas que, juntamente com o cinema, amiúde recorrem ao livro para sustento das suas fantasias. Torna-se assim obrigatório um trabalho de vigilância activa, de depuração e mesmo supressão forçada de determinados textos e autores considerados para lá dos limites ideológicos.
Júlio Martins fala claro a este respeito quando afirma que "não há, na verdade, colecções de contos portugueses destinados à iniciação literária dos nossos rapazes de 12-13 anos de idade; e as próprias edições individuais, que também não abundam no mercado, mal podem satisfazer, por seu turno, aquela finalidade, se atendermos, entre outros factores, à preocupação moral que deve presidir a todo o ensino".
É pois fundamental que "se ponham de parte, ou sofram os cortes convenientes, todos os textos susceptíveis de desenvolver nos alunos tendências impróprias das suas idades, provocar emoções mórbidas ou prejudicar de qualquer modo a boa formação moral". Tudo porque "há escritores portugueses, mestres no género, cujos contos deverão reservar-se apenas para adultos: a sua omissão aqui justifica-se perfeitamente" (1952, pp. 6-7 ).
Bibliografia
Epítome de gramática portuguesa (em colaboração com Pires de Castro), Lisboa, 1940. Lições elementares de literatura portuguesa (7º ano), Lisboa, 1940. Manual elementar de literatura portuguesa (em colaboração com Óscar Lopes), Lisboa, 1941. "O actual sistema de exames: breve notícia histórica", Liceus de Portugal, n.º 30 a n.º 32, 1943 e 1944, pp. 2436-2463, pp. 2525-2546 e pp. 2605-2612. "Exames de aptidão para a primeira matrícula nas universidades: resultados obtidos em 1943", Liceus de Portugal, n.º 33, 1944, pp. 2690-2696. "Serviço de pontos para exames: algumas notas sobre o seu funcionamento em 1943", Liceus de Portugal, n.º 34, 1944, pp. 2753-2767. "Exames realizados em 1943", Liceus de Portugal, n.º 34, 1944, pp. 2770-2773. "Exames de admissão aos liceus: resultados obtidos em 1944", Liceus de Portugal, n.º 37, 1944, pp. 23-44. "Exames do 2º ciclo: resultados obtidos nos liceus de Lisboa", Liceus de Portugal, n.º 38, 1944. "Exames de aptidão: resultados obtidos em 1944", Liceus de Portugal, n.º 39, 1944, pp. 214-225. Breve história da literatura portuguesa (em colaboração com Óscar Lopes), Lisboa, 1946. Contos escolhidos de autores portugueses (3º ano), Lisboa, 1952. Ditosa pátria: selecta portuguesa para os cursos de formação e ensino de aperfeiçoamento (em colaboração com Manuel da Silva), Lisboa, 1951. Os doze de Inglaterra, Lisboa, 1956. "A solução dum velho problema: a falta de uniformidade da nomenclatura gramatical", Labor, n.º 191, 1960, pp. 309-325. Manual elementar de ortografia com exercícios de aplicação, Lisboa, 1961. Selecta Literária (3º/4º/5º anos) (em colaboração com Jaime da Mota), Lisboa, 2 vols., 1962. Caderno de Português: questionário gramatical e exercícios de revisão sobre o programa liceal (1.º ano) (em colaboração com Jaime da Mota), Lisboa, 1963. Vamos ler: livro de língua portuguesa para o ensino primário complementar (em colaboração com Jaime da Mota), Lisboa, 1966. Caderno de Português: questionário gramatical e exercícios de revisão sobre o programa liceal (2º ciclo) (em colaboração com Jaime da Mota), Lisboa, 1967. Colectânea de textos da língua portuguesa (em colaboração com Jaime da Mota), Lisboa, 1972. Nova colectânea: textos de língua portuguesa (7º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares e Jaime da Mota), Lisboa, 1976. Nova colectânea: textos de língua portuguesa (8.º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares e Jaime da Mota), Lisboa, 1977. Nova colectânea: textos de língua portuguesa (9.º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares e Jaime da Mota), Lisboa, 1978. Textos de língua portuguesa (10º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário do Carmo, M. Carlos Dias e Jaime da Mota), Lisboa, 2 vols., 1978. Textos de língua portuguesa (9º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário do Carmo, M. Carlos Dias e Jaime da Mota), Lisboa, 1980. Textos de língua portuguesa (11º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário do Carmo, M. Carlos Dias e Jaime da Mota), Lisboa, 2 vols., 1980. Textos de língua portuguesa (7.º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário do Carmo, M. Carlos Dias e Jaime da Mota), Lisboa, 1981. Textos de língua portuguesa (8º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário do Carmo, M. Carlos Dias e Jaime da Mota), Lisboa, 1981. Ler e comunicar: português (7º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário Carmo, Cristina Pimentel e M. Carlos Dias), Lisboa, 1983. Ler e comunicar: português (8.º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário Carmo, Cristina Pimentel e M. Carlos Dias), Lisboa, 3 vols., 1984. Ler e comunicar: português (9.º ano de escolaridade) (em colaboração com Cecília Soares, Mário Carmo, Cristina Pimentel e M. Carlos Dias), Lisboa, 3 vols., 1985. Aprender português: gramática teórico-prática (5º e 6º anos de escolaridade) (em colaboração com Leonor Sardinha e Carmen Nunes), Lisboa, 1990. Português: Textos e actividades (11º ano de escolaridade) (em colaboração com Mário Carmo, Cecília Soares, M. Carlos Dias e Manuel Lopes), Lisboa, 1991. n Labor. Liceus de Portugal.
Jorge Ramos do Ó, «GAMEIRO Ottolini, RAQUEL ROQUE», in António Nóvoa (dir.), Dicionário de Educadores Portugueses, Porto, Edições Asa, 2003, pp. 891-893, com adaptações.