Carta ao Manuel
* Teresa Martinho Marques
Querido Manuel, é tão tardia esta carta. Tão irremediavelmente tardia que nem sei em que estrela te pendurarás para a escutar ao meu lado enquanto a canto como a um fado.
Eu que me habituei a ser fada de mim e a usar uma varinha de condão para realizar os sonhos que vou sonhando (tantos deles para a escola), não quero acreditar que um deles vai ficar perdido por aí, deambulando, órfão de ti e da tua voz, sem destino a que chegar.
Sabias que fiz planos para me cruzar contigo e quase consegui? Tantas perguntas eu levava no bolso. Afinal só estivemos quase juntos porque o espaço foi o mesmo (inverno frio na Guarda e uma biblioteca quente), mas os dias foram dois, colados um ao outro sem se sobrepor. Adiamos na vida tanta coisa. E depois o sal e a dor. E inventamos que as pessoas não morrem porque a obra, a memória, essas coisas de circunstância, de limpar lágrimas e seguir em frente. Morremos sim, porque o futuro vai ser para sempre feito de passado. Parece que é a mesma coisa, mas é tão diferente. Eu queria continuar a escutar a tua voz e colá-la ao que já disseste até te dizerem que não podias dizer mais nada. Fim. Não queria somente o que já foi, o que li e reli. Não queria apenas amanhã só regressar a ti.
Não é professor quem quer. E podemos ser professores sem querer, sem saber.
Tu foste o mestre que escolhi, sem sequer te pedir licença. Zangada com os deuses distraídos que deixaram bruxas e monstros maus calar a tua presença.
Mas talvez este sonho agora sem rumo tenha ficado apenas interrompido. Seja assim um intervalo de ser em que vamos às nossas vidas em paralelos planos, até à interseção final toda semeada de mistério e esperança.
Quem sabe um dia encontro-te, estendo-te a mão e explico: Olá, Manuel, chamo-me Teresa e sou professora. Também escrevo um bocadinho, aqui e ali, mesmo quando não escrevo e uso as palavras só para tecer o pensar.
E nem imaginas o tanto, o imenso que me fizeste crescer e caminhar até voltar a ser criança…
«Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...»
O pássaro da cabeça, «Coisas que não há que há», de Manuel António Pina
* EB 2,3 de Azeitão e CCTIC – ESE/IPS: http://projectos.ese.ips.pt/cctic/ e http://eduscratch.dgidc.min-edu.pt/