O elogio do humano na literatura
Luciana Cabral Pereira
Em tempos de pós-modernismo, prolonga-se ainda nos amplos espaços da criação artística e literária os efeitos ulteriores do espartilhar do sujeito humano. Resultado de uma progressiva escalada de introspecção subjectiva romântica, cuja exacerbação ontológica cedeu lugar à disseminação e consequente fracturação de identidades, tal como exemplarmente plasmam na obra poética de Fernando Pessoa, tamanha representação do esvaziamento humano justifica, em contrapartida, o elogio do humano na literatura. Desviado de qualquer tipo de idealismo infecundo e duvidoso, o discurso panegírico que aqui se apresenta dirige-se, muito fundamentalmente, às iniciativas didáctico-pedagógicas que intentam a revelar o humano nos textos e obras da literatura, em tempos indecisos quanto ao rumo da educação escolar e geral. Mais concretamente, elogie-se as iniciativas humanistas de abordagem e críticas literárias que acolhem o texto literário como algo mais do que um objecto de análise metodológica rigorosa, qual produto de uma operação lógica e maquinal. Afinal, se a literatura é, para além de muitas e discutidas coisas e naturalmente legítimas opiniões, um prolongamento sensível e criativo do humano, e a poesia um “ […] espontâneo transbordar de sentimentos poderosos […]” [Jones, Alun R., Tydeman, William, 1984: 36], no sentido wordsworthiano de uma extraordinária captação romântica das vidas, sujeitas à filtração sensorial e subjectiva do sujeito poético, valerá certamente a pena resgatar tamanhos conteúdos humanos.
A recuperação desta orientação formativa e pedagógica equivalerá ao encetar de um projecto e esforço educativos interessados em devolver ao estudo da literatura e dos seus textos a dimensão humanista original, pela qual se educaram e formaram civilizações. De facto, e adentro de contextos culturais que fizeram rasura da razão e dos grandes quadros axiológicos orientadores, (pré-) sente-se uma cultura ansiosa pela expectável mudança de paradigmas, fruto de um desenvolvimento até ao paroxismo de modelos económicos, sociais e, por conseguinte, educativos demasiadamente tecnológicos e individualistas. Muito naturalmente, aguardar-nos-á um tempo e cultura ávidas por um renovado movimento humanista da cultura, que recupera o sujeito humano da hodierna entropia civilizacional ocidental para o centro do debate e da educação e lhe devolva um sentido identitário e uma orientação valorosas. Muito provavelmente, será a literatura, qual extraordinária fonte de conteúdos humanos exibidos e promissores recursos de humanização do homem, o auspicioso agente de tão promitente e arrebatadora empresa. Elogie-se, por isso, os entusiasmantes acolhimentos do literário, apostados no aproveitamento escolar dos seus elementos éticos, morais e axiológicos, deste modo permitindo que os alunos apreendam, sensível e criticamente, aquilo que constitui os traços comuns à humanidade, transversais, de facto, a todas as épocas, culturas e civilizações. Sem negar ou retirar valor a demais abordagens escolares do texto literário, é por demais crucial que os alunos acedam à reflexão e análise desses conteúdos humanos segundo preocupações justamente humanistas. Pensar e reflectir ética e moralmente sobre as personagens literárias e seus desafios ou dilemas narrados ou trabalhados significa conhecer melhor o outro, tomar contacto com a nossa própria natureza subjectiva, tal como é enformada pelos traços da nossa personalidade e carácter. O que impede ou adia, afinal, que o ensino escolar da literatura também possa consistir numa apreciação estética diferente do objecto literário? Aos alunos pode ser possibilitada uma abordagem mais pragmática, segundo a concepção do filósofo Richard Rorty para quem a literatura serve, justamente, para adquirirmos um maior autoconhecimento, nomeadamente através da reacção às personagens e temas literários [Culler 1993:104], de acordo com uma perspectiva e objectivos de ensino humanistas. Aliás, segundo o mesmo filósofo, " [...] A ideia segundo a qual um comentador descobriu o que um texto realmente faz – por exemplo que o texto realmente desconstrói as oposições hierárquicas da metafísica ocidental, em vez de simplesmente poder ser usado para esses propósitos – é para nós, pragmatistas, completo ocultismo. [...] " [Rorty 1993: 92]. De facto, em defesa de uma “crítica inspirada”, próxima de uma abordagem humanista referida, e consequentemente divergente da tradicional e dominante “crítica metódica”, Rorty considera que a primeira “ […] é o resultado de um encontro com um autor, personagem, intriga, estrofe, linha ou torso arcaico que mudou a concepção sobre quem é, para que serve, que quer fazer de si: um encontro que redefiniu as suas prioridades e propósitos. Tal crítica usa o autor ou texto não como exemplar que repete um tipo mas como ensejo de transformação de uma taxonomia anteriormente aceite, ou ocasião permitindo introduzir uma inflexão nova numa história já contada. […]” [Rorty 1993:96]. Ora, de modo idêntico, o aluno, assim como toda a comunidade educativa e escolar, poderão beneficiar desse rico e extraordinariamente formativo encontro literário, filtrado a partir de orientações educativas e perspectivas didáctico-pedagógicas humanistas. Justamente, realizar essa tão exortada “leitura inspirada” dos textos literários equivalerá, segundo Rorty, a achar no texto a fonte de inspiração e orientação vitais, portanto, auxiliando-nos a todos “ […] a querer algo diferente – que nos ajudem a mudar os nossos propósitos e, com eles a nossa vida. […]” [Rorty 1993:95]. Elogie-se, por isso, essa e mais análogas vontades. Bibliografia Culler, Jonathan, “Em defesa da Sobreinterpretação”, in Interpretação e Sobreinterpretação, direcção de Stefan Collini, Tradução de Miguel Serras Pereira, 1993, editorial Presença, Lisboa. Jones, Alun R., Tydeman, William, Wordsworth: Lyrical Ballads, 1984, 1.ª ed. 1972, Macmillan Publishers, London Rorty, Richard, “O progresso do Pragmatista”, in Interpretação e Sobreinterpretação, direcção de Stefan Collini, Tradução de Miguel Serras Pereira, 1993, editorial Presença, Lisboa.
Luciana Cabral Pereira – Licenciada em Línguas e Literaturas Moderna, FLUP; doutoranda em Didáctica da Literatura, UTAD; investigadora do CITCEM / FLUP.