De quem é a culpa?
Inês Silva*
O fim do Inverno foi abalado tragicamente por duas mortes nas escolas portuguesas: a de um professor e a de um aluno. Por bullying, diz-se. Portugal comoveu-se, revoltou-se e angustiou-se. Acompanhou com atenção as notícias na TV e nos jornais, ouviu psicólogos, pedopsiquiatras, professores, mães, pais, toda a gente e gente nenhuma. – De quem é a culpa? – Perguntava-se. – A culpa é da sociedade… – respondia-se. Lançaram-se flores ao rio. E a estação do Inverno fechou com a frase da senhora ministra da educação, a propósito das consequências que os alunos do professor que se suicidou ou dos meninos que perseguiam Leandro poderiam vir a sofrer: “A vida das crianças deve estar acima dos debates”.
Chegou a Primavera. Maravilhosa Primavera, a incluir luz, flores e o chilrear dos pássaros, mas com as crianças fora dos debates. Nem acima, nem no meio… completamente fora, como se a criança não fizesse parte da nação, e, por isso, não tivesse de ser instruída, corrigida, auxiliada, conduzida, ou seja, educada. Há uns anos atrás, a maldade dos meninos manifestava-se de outras formas, pois não chegavam a tanto. Ou eram impedidos de chegar a tanto pois a educação estava no lugar certo e na hora certa. Consistia, pois, a sua traquinice em partir os vidros de uma ou outra casa abandonada com umas pedrinhas que encontravam no percurso que faziam para a escola, ir aos ninhos e fazer cair propositadamente para o chão um ou dois ovos, pregar um susto a um idoso ou numa vizinha, que os afugentava com um pau de vassoura no ar. E as consequências destas acções menos dignas, infantis e irresponsáveis, eram uns açoites dados pelos pais, caso alguém lhes viesse fazer queixas dos filhos, ou um castigo como limpar o automóvel lá de casa ou ficar sem brincar duas ou três tardes, o que significava ir trabalhar com os pais ou tomar conta dos irmãos mais novos, em vez de ir para a rua correr e saltar. E ai daquele que dissesse em casa, a chorar, “A D. Maria correu atrás de mim com a vassoura, caí, e feri o joelho”, pois logo a mãe respondia ironicamente – “Muito bem feito! Não devias ter ido para o seu quintal! Queira Deus que te acerte para a próxima!” Por que razão nunca concordavam os pais com os filhos em questões de malvadez e agressividade, nunca achavam graça às suas patifarias, nem nunca lhes davam razão, tendo, ainda por cima, a mão pesada ou o castigo sempre preparado? Por que se esforçavam por saber que locais frequentavam, o que faziam, com quem andavam? A resposta é simples: para que as crianças e jovens não chegassem “a tanto”. Não creio que as anteriores gerações de crianças e jovens sejam hoje adultos traumatizados, medrosos ou com falta de auto-estima, só porque um qualquer adulto lhes disse “Isso não se faz!” ou “Não voltes a fazer isso”. Não se está aqui a falar de casos de violência ou de punições cruéis e injustificadas por parte do adulto em relação ao menor, o que é considerado crime. Está-se, sim, a falar de educação no verdadeiro sentido da palavra: ensino, orientação e responsabilização. As crianças devem estar no centro da atenção dos pais, no centro da acção da escola e no centro do debate nacional. Nunca de parte, como se de bonecos de cristal se tratassem. São de carne e osso, têm carácter e personalidade, gostos e receios, percursos de vida bons e maus e estão a aprender a conhecer-se a si e aos outros. E aqui reside a acção do adulto: orientá-los para o bem pessoal e social. As crianças não podem bater umas nas outras. Se o fazem uma vez, o adulto impede-as de o fazerem uma segunda vez, educando-as determinantemente, até conseguir. As crianças não chamam “cão” ao professor, ao pai ou ao avô. Se o fazem uma vez, o adulto impede-as de o fazerem uma segunda vez, educando-as determinantemente, até conseguir. As crianças não podem estar a brincar nas aulas, prejudicando o ambiente de trabalho e de aprendizagem. Se o fazem uma vez, o adulto impede-as de o fazerem uma segunda vez, educando-as determinantemente até conseguir. E assim sucessivamente. A esta acção do adulto chamo persistência. E quando um adulto não é capaz de o fazer – chama outro e outro e outro. E então temos, perante uma questão de bullying ou indisciplina – o pai, a mãe, o professor, o director da escola e a ministra da educação. Quem tem mais força? A criança ou cinco adultos unidos, responsáveis e determinados em não facilitar? Tem resposta a pergunta que todos nós fizemos no fim do Inverno: de quem é a culpa? A culpa é da criança que fez/faz mal e do adulto que deixou/deixa fazer mal. E há que responsabilizar e educar o culpado, seja maior ou menor. Não fazer nada é a demissão total de uma sociedade que quer fazer de conta que está tudo bem, quando está tudo mal. Não há coitadinhos: há educadores e educandos. E estes papéis têm de ser desempenhados com mestria. Ou não há educação em Portugal. Mas antes de procurarmos culpados, recoloquemos a criança no centro do debate, onde já esteve. Se todos os focos estiverem para si virados, ela não terá oportunidade de ser indisciplinada ou agressiva duas vezes. Dá mais trabalho educar a sério, mas é menos perigoso e menos mortal.
* Inês Silva – Doutora em Linguística (Sociolinguística). Tem realizado estudos sobre a escrita dos alunos. É autora de várias publicações de carácter didáctico e de carácter linguístico. Na ficção, publicou o romance: A Casa das Heras. É docente no Externato Cooperativo da Benedita.