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Correio da Educação

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Luciana Pereira*

 

Com a criação de um dia mundialmente comemorativo da poesia, faz, afinal, todo o sentido reflectir acerca da atractividade do texto poético no âmbito da sociedade ocidental contemporânea, justificando, entre outros aspectos, tamanha visibilidade. Não é intenção deste artigo debruçar-se sobre uma análise académica dos virtuosismos distintivos do texto poético ou da sua caracterização genológica adentro da sua evolução diacrónica. Desta vez, interessa perceber os motivos concretos que explicam a sua resiliência em contextos culturalmente dominados pelas inovadoras formas de comunicação e interactividade multimédia criativas.

A propósito, destaco um artigo bastante elucidativo, publicado no jornal New York Times, no dia um de Novembro de 2001, justamente no rescaldo dos terríveis acontecimentos reportáveis ao fatídico dia de 11 de Setembro desse mesmo ano. Com efeito, comentava-se nesse artigo intitulado Making Books; Poetic History Of the Heart (A Produção de Obras; A História Poética do Coração) e de um modo significativamente objectivo que “ [...] Uma vez que o amor a morte são parentes da poesia, não admira que as pessoas se voltem hoje cada vez mais para ela em busca de conforto e compreensão. […]”[Arnold 2001]. Mais ainda, parecia objecto de evidente e geral consensualidade a ideia de que à poesia eram atraídas as pessoas envoltas de “ [...] acontecimentos terríveis [...]”, aspecto que à data contribuía para a sua grande popularidade [Arnold 2001].

As motivações destacadas para tão acelerado e renovado dinamismo do circuito de vendas, compras e troca de textos poéticos dão conta da possibilidade despudoradamente instrumental e positiva consagrada pela poesia. Mais concretamente, atribuem-se-lhe capacidades de decifração das emoções, qual “ [...] versão literária do sound bite. [...] simpatizante da Internet e dos emails precisamente devido ao poder das suas palavras na mais pura das suas formas [...]”[Arnold 2001]. A partir da poesia, as pessoas acreditam poder (re)colher, de facto, uma maior capacidade compreensiva sobre factos reais desagradavelmente experimentados e terrivelmente sentidos, o que em última instância confere sensações de conforto e aliviante drenagem emocional [Arnold 2001].

Ora, partindo da metáfora do “periscópio” com o qual Susan Wise Bauer compara a poesia, na sua obra The Well-Educated Mind [Bauer 2003, p. 308-309], é possível, de facto, perceber o modo pelo qual a poesia garante tamanha concretização de tipo profilático àqueles leitores que acedem aos poemas em busca daquilo que Harold Bloom considera poder ser uma espécie de “ [...] transcendência secular ou espiritual [...]” [Bloom 2000, p. 138]. Justamente, a ideia do “periscópio” associada ao poema, na sua dupla realização formal e conteudisticamente acabada, possibilita ao leitor contemplar a força do mesmo, ainda que filtrada à luz da lente que lhe é própria e intransmissível, portanto, sentindo e percebendo o poema de um modo íntimo e diferente do próprio sujeito poético [Bauer 2003, p. 308-309].

No fundo, a metáfora dessas lentes que são o “periscópio” explica a operacionalização de uma “transitividade” da substância inspiradora dos conteúdos poéticos que, mediante a beleza ou fealdade retratadas, inspira à “superação” de sentimentos negativos [Lyra 1986, p. 57] e “ [...] ajuda as pessoas a viverem as suas vidas […]” [Bloom 2000, pp. 142]. Nesse sentido, compreende-se a leitura de Pedro Lyra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, : “ No poema, transfigurando a realidade, o desejo/lamento se transforma em conquista: a obra – que ocupa o lugar da perda. Liberta da fugacidade do tempo, a obra eterniza o projecto do sujeito, realizando-o sob uma outra forma. […] [Lyra 1986, p. 83-84].

 

Esta leitura “existencial”, da poesia, a partir da qual o leitor investe a sua energia num exercício de desembaralhar ou desenredar os seus próprios sentimentos ou emoções negativas não é também estranha a Edgar Morin. Na verdade, o mesmo autor considera que “ […] Os problemas da vida aparecem na literatura, na poesia, […], em que o adolescente pode reconhecer as suas próprias verdades, discernir os conflitos e tragédias que virá a encontrar. […]” [Morin 1999, p.14]. Ora é justamente essa possibilidade iluminadora vital oferecida pela poesia aos seus leitores que pode ser inclusivamente celebrada no dia 21 de Março: “ [...] A poesia (e a arte de um modo geral) oferece um meio eficaz: sob forma abstracta, ela preserva do desaparecimento definitivo o pouco que conquistamos. [...] [Lyra 1986, p. 83-84].

Talvez, seja exactamente por tudo isto que Billy Collins, poeta laureado nos Estados Unidos da América, defenda que a poesia “ [...] é a única história que possuímos sobre o coração humano, [...]” [Arnold 2001].

 

Bibliografia:

Arnold, Martin, “Making Books; Poetic History of the Heart”, New York Times 1 Novembro 2001, http://www.nytimes.com/2001/11/01/books/making-books-poetic-history-of-the-heart.html?scp=1&sq=poetry+as+a+confort&st=nyt.

Bauer, Susan Wise, The Well-Educated Mind, 2003, Norton & Company, New York, p.432.

Bloom, Harold, How to Read and Why, 2000, Fourth Estate, London p. 283.

Morin, Edgar, O Desafio do Século XXI, Religar os Conhecimentos, 1999, Instituto Piaget, Lisboa.

Lyra, Pedro Conceito de Poesia, 1986, Editora Ática, São Paulo, p.96.

*Luciana Cabral Pereira – Doutoranda na área da Didáctica da Literatura pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e Investigadora do CITCEM, FLUP.

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