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Correio da Educação

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Inês Silva*

É certo que o século XXI mal começou. Dez anos em cem são simplesmente dez anos. Uma criança com dez anos é uma criança que completou ou está para completar o primeiro Ciclo do Ensino Básico, que gosta de gomas, de Pokémons ou de Barbies, e que adora desobedecer aos pais para ver até onde a corda estica. Já um idoso de 90 anos, prestes a completar um século, é um “saber de experiências feito”, que passa o tempo a prever quando chove e quando faz sol, que não chora perante a morte nem perante os maiores acidentes sociais provocados pela desatenção de um qualquer governo que o tenta governar.

 


Por isso, dez anos são dez anos e valem o que valem. Mas será que já é possível identificar alguns dos grandes intelectuais que vão ser designados os grandes pensadores do século XXI daqui a um tempo (aqueles que, tendo nascido no século XX, irão revolucionar o presente século)?

Recuperem-se, pois, alguns dos grandes pensadores do século XX com obra feita e apresentada ao mundo, nas várias áreas: Piaget, Saussure, Jean-Paul Sartre, Chomsky, Albert Einstein, M. Gandhi, Claude Lévi-Strauss… A lista é infinita, diversificada e cada individualidade foi única no seu tempo, singular no espaço eterno do mundo, conhecida na sua época e fora dela, citada, debatida, arrebatada, engrandecida… porque deu origem a uma pluralidade de conhecimentos atemporais que contaminaram positivamente as áreas do humano, do social, da ciência e da tecnologia. Os seus efeitos sentiram-se no século que passou e sentir-se-ão igualmente nos vindouros. São eles citados por intelectuais de vários domínios, servem de suporte a diversas teorias e proporcionam a interdisciplinaridade. Não se circunscrevem a um tempo, a um espaço, nem a uma área do saber. Foram heróis solitários que souberam compreender, à sua maneira, os enigmas do mundo, porque os analisaram de forma única e exemplar. As ideias geniais que tiveram foram como que “abençoadas” pelos seus discípulos, adoptadas por fiéis seguidores e vivificadas eternamente por todos os que se sustentam do conhecimento.

O grande pensador do século XXI corre sérios riscos de nunca vir a ser como os exemplos que apresentei, porque entendo que as suas ideias podem nunca vir a ser grandes e o herói solitário pode efectivamente vir a morrer (se não está já morto).

Vive-se numa época em que não há ideias porque estas não são conhecidas transversal e interdisciplinarmente pelo conjunto das diferentes áreas científicas e pelas diferentes comunidades culturais. Vencem, sim, fragmentadas, em disciplinas isoladas. Se não há transferência de saberes de uma área para outra não é com certeza por falta de comunicação a nível da “global village”, uma vez que as informações nunca correram o mundo tão depressa como no tempo em que se vive. O problema pode ser outro: se uma grande ideia não se ajusta a um outro campo de conhecimento que não o seu de origem, ela poderá não ser uma grande ideia.

Há também uma outra questão: parece, pois, que está tudo dito, feito e pensado. Quando surge algo de novo, um simples dito, uma ideia, uma concepção ou uma teoria, passa-se à sua formulação, quer através da escrita quer através do discurso oral, sendo certo que é para o seu autor plausível e comprovável, mas, depois de aprofundado e de integrado no universo de conhecimentos de que faz parte, verifica-se que alguém já tinha feito tal construção ideológica, já a expusera, já a publicara… Talvez não daquela forma mas de outra.

Vamos, por exemplo, aos textos que surgem nos dias de hoje: o que dizem já foi dito, o que exemplificam já passou, o que reivindicam já foi ignorado em tempo idos. Assim sendo, o que ainda nos faz sorrir ou ficar aborrecidos ou extasiados perante um texto escrito é o tom tomado em cada um pelo seu autor, num estilo surpreendente, ingénuo ou elevado.

Passando dos textos à sétima arte, deve ser cada vez mais difícil para um argumentista em Hollywood prender a atenção do público pelo argumento que vai servir a imitação na tela. Todos os cenários de guerra, de destruição, de poder, passando pelos de ficção científica, até chegar aos encontros e desencontros familiares e amorosos, já foram ensaiados em filme. Nas séries que passam consecutivamente em canais como Fox e AXN, entre outros, há o grupo dos maus e o dos bons, o dos médicos legistas e o dos polícias forenses, a solução para tudo e para nada. Muito do que sucede é mais ou menos previsível mas nunca inimaginável.

É também certo, e voltando à ciência, que os investigadores criam o expectável, o que é necessário para o momento, o que faz falta, o que é dito por alguém nos termos: “nunca mais inventam …”, o que é imediatamente pensado ou feito. Há também os que pegam no que os do século XX engendraram, sendo estes os mestres, os professores, os intelectuais, os sábios, e seguem as suas pegadas, contestando, melhorando, refutando, mas nunca perdendo o rasto inicial. Contudo, os movimentos não são criados de raiz, mas são adaptações, acrescentos, reconstruções do que já existe – no fundo, trata-se de “a última versão de…” / “um novo olhar sobre…” / “contributos para o estudo de …”.

O pensador é aquele que procura a ideia certa para desvendar o enigma do mundo, ideia essa que é bebida por todos os que têm sede de conhecimento, seja de que área de especialidade for. É, pois, aquele que pensa. Talvez por isso não tenha a sorte de vir a ser um grande pensador porque se vive num século em que pensar é considerado um acto pecaminoso: as pessoas não pensam porque alguém já pensou por elas e essas ideias estão todas no Google (é só procurar!); as pessoas não pensam porque podem contrariar os mestres de agora (infelizmente alguns são o oposto dos do século XX); as pessoas não pensam porque podem romper com o “politicamente correcto”; as pessoas não pensam porque podem deixar de seguir “tendências e modas”; as pessoas não pensam porque podem perder o emprego. Por isso, o século XXI é o século do “Ai daquele que pensar!”

Está-se à espera dos grandes pensadores do século XXI, que virão um dia a ser conhecidos como tal. Possivelmente alguns já nasceram. Mas o espaço é fechado para a grande ideia e o tempo perigoso para o herói solitário. Há, contudo, que olhar para os mais novos e encorajá-los a contrariarem esta tendência, antes que o século XXI dê lugar ao século XXII. Cem anos passam depressa e ninguém quer que o século XXI seja o século do vazio.


*Inês Silva - Doutora em Linguística (Sociolinguística). Tem realizado estudos sobre a escrita dos alunos. É autora de várias publicações de carácter didáctico e de carácter linguístico. Na ficção, publicou o romance: A Casa das Heras. É docente no Externato Cooperativo da Benedita.

 

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