Até que ponto o jornalista profissional prejudica o escritor?
Até que ponto o jornalista profissional favorece o escritor?
Eis, sem embargo, um curioso problema de crítica literária. Para certos indivíduos, o jornalista é o pior inimigo (inconsciente) do escritor; mais do que nunca, o leitor deseja a informação rápida, fresca; apetece sentir, na folha de papel ainda cheirosa e húmida de tinta, as últimas vibrações cálidas do sucesso. O jornal deveria ser a projecção instantânea e ininterrupta da hora que flui; acontecimento a desenvolver-se, acontecimento a projectar-se. Daí o triunfo da rádio sobre a imprensa; a primeira estaria para a segunda como a tartaruga para o galgo, o trovão para o relâmpago.
Esta apetência da informação veloz - e do seu comentário analítico - acarretaria, como corolário fatal, a decadência literária do jornalismo.
A pressa dá lugar à improvisação, ao desalinho, ao mal-acabado; não existem ócios para brunir as imagens, pentear o estilo, bolear o período; a negligência da forma acompanhar-se-ia, por seu turno, da negligência do fundo; como reflexionar, com mesura, equilíbrio, objectividade, profundeza, se apenas «explodido» o sucesso, temos logo de lhe colar o apêndice crítico? Ainda o sangue espadana, o fumo tremula no ar, o clarão deslumbra os olhos, a pólvora irrita as narinas, e já o jornalista faz ranger a pena julgadora no papel branco.
Têm peso, decerto estas razões. O jornalista pensa, escreve à pressa.
E a pressa é inimiga do escritor.
Para outros críticos, o jornalismo - se é certo que pela sua precipitação obriga o intelecto ao descuidado da forma e ao superficial do fundo - dá-lhe em compensação, e com o tempo, um forte banho de realidade; leva-o a «mergulhar» na vida, a imiscuir-se no fluxo onduloso e complexo dos acontecimentos. O jornalista vive em plena vida e vive a vida; rodeia-o o mundo, como onda túmida. É gotejando da vida, com a pele ainda borrifada da espuma dos faits divers, que ele tem de curvar-se sobre o papel. Esse contacto quotidiano com o real infunde-lhe nas veias um grande sentido humano; quem como ele, regista - à maneira de um quimógrafo - a pulsação das horas?
Dores, júbilos, traições, glórias, covardias, anseies, ruínas, vitupérios perversões, tudo, afinal, a sua pupila vê, o seu ouvido escuta, a sua mão tateia.
Como aquele homem que, sem o saber, transportava ao colo Deus-Menino, e portanto o mundo, o jornalista transporta, sem o saber, na ponta da pluma, a bola do universo. Eis porque o jornalismo é profissão esgotante, depauperadora; como labareda, queima, e como areia do deserto, chupa.
A passagem pelo jornalismo será escola enriquecedora do escritor; dar-lhe-á ocasião de surpreender, captar documentos sociais pris sur le vrai, sur le vif, sur le saignant; de penetrar na alma de certos «meios», de certas «classes»; de compreender melhor o «comportamento» biossociológico do complexo «bicho humano». Em resumo, o jornalismo oferecer-lhe-á o suco da vida, sem o qual toda a obra de arte, por mais esplendente, é verbalismo estéril, literatice, poeira vã.
Pode-se ser escritor sem se ser jornalista ou nunca tê-lo sido; mas o jornalismo, por isso que enraíza as suas bases na vida, longe de ofender a arte, humaniza-a, universaliza-a.