O Carnaval - Tempo de pôr ou tirar a máscara?
1. Os três dias de Carnaval são das recordações mais vivas da minha infância. Nunca entendi por que eram reis, nesses dias, os menos enquadrados, socialmente. A impressão era de que, a relevância desses dias, justificava a singularidade de que gozavam. O seu comportamento parecia, então, causa e consequência da distinção anual, que eu não distrinçava se era positiva ou negativa.
Tudo estava certo no meu mundo infantil, como assim aí permanece. Todos se transfiguravam, adultos e crianças, homens e mulheres, fossem actores ou espectadores, arrastando consigo as ruas os largos, a praça e o ambiente da localidade. Era o Carnaval, à medida da aldeia.
Mais tarde, como noutros aspectos da vida pessoal e social, alargaram-se os horizontes. E também o Carnaval me proprocionou essa sensação única de me ver culturalmente a estender raízes, hoje, cada vez menos locais e mais globais. É o poder da comunicação e suas tecnologias, aliado à existência de um mínimo de tempo ou lazer e de dinheiro, disponíveis.
2. À pergunta do título, respondia Vergílio Ferreira: “Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se.” (Revista Única, 13.2. 2010: 19) É outro modo acertado de ver e sentir as coisas. O que é e onde está a normalidade? Por detrás ou pela frente da máscara? Ou em ambos os lados da existência do homem?
Também, na definição desta época do ano, mais do que uma noção, surgem referências exteriores à mesma. As próprias palavras de origem, carne + vale ou carne + velare, indicariam o início do “afastamento” dos prazeres carnais, em sentido próprio, abstinência de carne na alimentação, e em sentido figurado, tempo de privações festivas.
Tal prática, iniciada no século XI, com a criação da Semana Santa pela Igreja Católica, antecedida por quarenta dias de jejum de carne (quaresma), levou a que, antes desse período, tivessem lugar dias e momentos festivos cujas formas de concretização foram variando.
Na sua origem, encontramos, ainda, as festas saturnais romanas, com as quais se celebrava a entrada do ano, para que ele fosse favorável, ou da Primavera, símbolo do renascer da Natureza. Por isso, ainda hoje há locais onde os festejos do Carnaval começam no Dia de Reis e vão até à Quaresma. Mas concentram-se nos três dias gordos (domingo, segunda e terça-feira), antes do Dia das Cinzas.
As máscaras têm, na origem, um carácter religioso-espíritual, de culto aos mortos. O espírito destes antropomorfizava-se e aqueles que os personificavam vestiam panos brancos e colocavam uma máscara. Acendiam fogueiras nas quais queimavam um boneco, uma cruz e um gato vivo, símbolos da destruição dos espíritos malignos. O fogo e o fumo purificam os corpos e livram-nos dos maus espíritos.
No Renascimento, as festas carnavalescas incorporavam os bailes de máscaras, com ricas fantasias e carros alegóricos. Ao carácter de festa popular e desorganizada, juntaram-se outros tipos de comemoração e progressivamente a festa foi tomando o formato actual.
3. O Carnaval português, até 1817, tomou contornos grotescos e agressivos, confirmados pelo intendente geral da polícia: lutas de rua com ovos, farinha, pós de goma, água de cheiro, tremoços, milho e feijão, despejados aos alqueires sobre a cabeça dos transeuntes, a que se juntavam areia, laranjas, tangerinas e até pastéis de nata e outros bolos. Estes eram motivos vulgares em qualquer localidade, com destaque para Lisboa e Porto.
Nos finais do século XIX, estas cidades pretenderam civilizar o Carnaval e começaram a sair para as ruas de forma organizada, em esplêndidos cortejos de carros alegóricos e em aparatosas cavalgadas. Destacaram-se, na primeira, o Clube dos Salsas e, na segunda, o Clube dos Fenianos.
Hoje todos sentimos a necessidade de distinguir o lugar e o tempo dos carnavais em que a vida nos envolve e atingir o saber da máscara, que nunca engana, como refere Maria Alice Fonseca em “Máscara de Carnaval”:
“Como te quero e admiro / Máscara de Carnaval... / Máscara querida, / Porque não és fingida... / Tu não mentes, / Dizes o que sentes, / És o que és... / Fica connosco / O ano inteiro; / Ensina o homem / A ser verdadeiro; / Tapa-lhe a cara / De máscara disfarçada, / Que faz do mundo actual, / Um terrível / E constante Carnaval."
Pois como, também, escreve Pessoa, Álvaro de Campos, em “Carnaval”: “A vida é uma tremenda bebedeira. / Eu nunca tiro dela outra impressão. / Passo nas ruas, tenho a sensação / De um carnaval cheio de cor e poeira... […] / Cada momento é um carnaval imenso / Em que ando misturado sem querer. / Se penso nisto maça-me viver / E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso.”
(“Carnaval” Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 7a.)
J. Esteves Rei - Professor Catedrático de Didáctica das Línguas e de Comunicação, na UTAD, Vila Real