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Correio da Educação

Correio da Educação

Um olhar naufragado
“15 de Novembro, Matosinhos

 

‘O Logro’

 

Parva! Grandessíssima parva! Até as colegas já deviam saber como fora ingénua e crédula com aqueles festejos de bodas de prata e bodas de ouro, solenizadas com missas e votos reformulados, na igreja, com troca de alianças, quando, afinal, ele mantinha uma amásia há mais de trinta anos! Trinta anos! Quase uma vida. Mais de metade do tempo em que tinham vivido juntos. E ela sempre a fazer dieta, para conservar o seu corpo de rapariga, apesar das rugas e da idade, sempre a privar-se de uma coisa boa. Idiota! Do que ele gostava, agora o tinha sabido, era de se afogar nas "mamocas" e nas redondezas da outra "bichaninha"!

 

Chamava-lhe "bichaninha", como a ela na intimidade, com certeza para evitar confusões. Desaforado! Logo depois da missa de corpo presente e a seguir ao enterro o tinha ficado a saber. Na secretária do quarto, entre papéis e contas já pagas, ao procurar uma direcção, encontrara o bilhete, que não chegara a ser enviado e ele tinha escrito, antes do ataque cardíaco e do internamento, esquecido entre a papelada. "Não sabes como te agradeço a tarde de ontem! Com o teu fogo sinto-me remoçar! É o que me tem aguentado nestes trinta anos. As tuas mamocas, bichaninha, são um ninho, onde me apetecia ficar afogado. Desejo tanto ... " A frase acabava, bruscamente, ali. Mas chegava para lhe dar a certeza de que mantinha com a outra uma chama que com ela se tinha apagado há muito. Desde há trinta anos, quando a tinha substituído. Só servira para o trazer tratado, engomado, para uma retaguarda de poupanças, que estava sempre a recomendar. Pudera! Precisava de economias para os mimos da outra, enquanto que com ela estava sempre a adiar tudo para depois da reforma, quando tivesse deixado de dar aulas. Biltre! Hipócrita! Com certeza ia vê-la todos os dias e talvez ainda lhe telefonasse do escritório. Talvez mesmo a tivesse levado com ele ao estrangeiro, quando ia por conta da firma, enquanto ela, a moira, dava aulas e poupava para a velhice! E depois de ter lido aquela infâmia e de ter recebido aquela punhada, ainda tinha tido de aguentar a missa de sétimo dia e os cumprimentos das colegas, que a abraçavam, constrangidas.


- Pobrezinha! Precisas de reagir, de não te deixares abater!


- Tens de te lembrar dos cinquenta anos de felicidade que tiveste!


Tinha, tinha sobretudo de se lembrar como fora traída e enganada. E como estava velha, um caco, como também não tinha podido deixar de ouvir.


- Está desfeita! Como envelheceu nestes dias!


Era para admirar?! De repente tinham-lhe caído em cima os anos que tentara disfarçar com dietas, ginástica, e para quê? Quando se lembrava que ainda ia haver a missa do mês e depois as missas de aniversário, todos os anos, os arranjos de flores no jazigo, onde ia ter de ficar, ao lado dele para todo o sempre, sentia-se sufocar. Pulha! Aquilo só a ela! Era o pago de ter sentido aquele brusco internamento e a morte dele nos cuidados intensivos, como um roubo! Sempre a pensar no tempo da reforma, para ter mais disponibilidade para o apaparicar, finalmente tempo para viajarem, juntos. Lorpa! Os filhos, bastante acabrunhados, também o não deviam ignorar. Há sempre gente, piedosa, para dar informações... O certo é que, passados dias, a tinham posto perante a necessidade de pôr a casa à venda. Fora a única coisa que ficara e tinha-a ajudado a pagar. Nunca lhe passara pela cabeça ter de sair dali, no fim da vida. A casa?! Sim a casa. Era preciso ser realista. Uma casa, como aquela, independente, com jardim, a exigir pessoal permanente e jardineiro, não era fácil de manter com a reforma dela. A manutenção era impossível e havia, ainda, o perigo dos assaltos. Justamente tinha vagado um apartamento no prédio da filha, que não devia perder. Era mais confortável, mais seguro, e mais económico, claro. E muito mais cómodo, no caso de uma doença, insistiram os filhos. Sim, sobretudo mais cómodo, para ela tomar conta dos netos, quando a filha quisesse fazer uma noitada ou ir para fora. Era aquela a amarga realidade que tinha de encarar, como encarava o seu rosto no espelho. Um rosto mirrado, macilento e sem maquilhagem, com sulcos de rugas e uma rede de pequenos entalhes, como feitos a canivete. Não era apenas uma velha, desiludida e amarga. Tinha-se transformado numa caricatura, difícil de suportar.


De repente, aquele quarto pareceu-lhe um cenário de uma peça, onde, julgando-se a heroína, tinha sido a imbecil. Correu o espaço vazio, como à procura de socorro, enquanto a caricatura do seu rosto a olhava. E, súbito, fixou-se no pisa-papéis, daqueles que nevavam a torre Eiffel, quando agitados. Tinha sido ele a trazer-lhe de Paris aquela lembrança de fancaria, se calhar enquanto lá estava com a outra. Pegou-lhe, furiosamente, e atirou-o contra a imagem do espelho. O seu rosto, caricatural, não desapareceu, mas estilhaçou-se a partir de um nó de malignidade, que alastrou até aos bordos. E viu cair com alguns vidros pedaços da sua carne, como atingida por uma lepra invisível."

 

Luísa Dacosta, Um Olhar Naufragado,

Edições ASA, 2008, pp. 144/146